Direitos do Cidadão
28 de Abril de 2025 às 17h0
PFDC e DPU apontam necessidade de melhorias nos processos de heteroidentificação racial do Concurso Nacional Unificado
Nota técnica é resultado de apuração de denúncias de recusa injustificada de candidatos às vagas destinadas para pessoas pretas e pardas
Arte: Comunicação/MPF
A formulação e o aprimoramento de normas e procedimentos voltados à aferição da autodeclaração racial de candidatos em concursos públicos são essenciais para garantir a efetividade da política afirmativa de cotas raciais. O procedimento deve ser conduzido tanto para combater as fraudes quanto para evitar a exclusão indevida de candidatos negros de seu direito constitucional de acesso à política afirmativa. É o que defendem, em nota técnica conjunta, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal com atuação em direitos humanos, e a Defensoria Pública da União (DPU).
O documento produzido pelos dois órgãos é resultado de procedimentos abertos para investigar uma série de denúncias de recusa indevida de candidatos às vagas destinadas a pretos e pardos no Concurso Nacional Unificiado (CNU). De acordo com os órgãos, o processo adotado para verificar se as pessoas podiam concorrer às vagas destinadas às cotas raciais apresentou falhas que comprometeram a isonomia e a segurança jurídica do certame.
A nota técnica elenca uma série de recomendações para evitar problemas futuros, como a criação de um protocolo nacional para avaliação da aparência física dos candidatos às cotas, com formulários padronizados e uso de escalas visuais para reduzir a margem de erro interpretativo, registros audiovisuais das sessões de avaliação e adoção de mecanismos para garantir a transparência das decisões das bancas, que devem ser devidamente fundamentadas.
Critérios uniformes para avaliação da aparência física – Ao analisar os procedimentos adotados no CNU, a nota técnica lembra que, no processo de heteroidentificação, a avaliação deve se pautar exclusivamente na aparência física da pessoa – cor da pele, textura do cabelo e traços faciais –, sem a inclusão de elementos subjetivos, como pertencimento identitário ou ascendência familiar. “A adoção do chamado critério fenotípico como elemento exclusivo na avaliação da autodeclaração étnico-racial constitui medida necessária para a concretização das ações afirmativas no Brasil, assegurando a correta implementação da política de cotas e seu objetivo primordial de promoção da equidade racial”, sustenta o documento.
No entanto, a falta de padronização da avaliação resultou em decisões discrepantes entre bancas distintas, comprometendo a segurança jurídica e ferindo o princípio da isonomia previsto na Constituição. Para resolver o problema, os órgãos indicam a adoção de um protocolo nacional uniforme sobre os critérios fenotípicos aplicáveis à heteroidentificação.
“Recomenda-se a implementação de formulários padronizados de avaliação, que incluam justificativas detalhadas das decisões, o uso de sistemas de classificação ou escalas visuais para reduzir a margem de erro interpretativo, e a capacitação obrigatória dos membros das bancas, com ênfase em estudos sobre fenotipia e racismo estrutural”, defende o documento. De acordo com a PFDC e a DPU, “a qualificação técnica dos membros das comissões é fundamental para garantir a idoneidade e a coerência das análises”.
Fundamentação – Os órgãos lembram que é essencial que os pareceres das bancas avaliadoras sejam devidamente fundamentados, para respeitar o princípio da motivação dos atos administrativos e viabilizar o exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa.
De acordo com a nota técnica, a restrição imposta aos recursos – com formulários inadequados e sem espaço para envio de documentos e anexos – configura cerceamento de defesa e vai contra os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, aponta a nota técnica. A falha deve ser corrigida. Além disso, em situações futuras, os nomes dos avaliadores devem ser divulgados com antecedência, para permitir a verificação de eventuais impedimentos ou suspeições.
Transparência – O documento destaca que todos os candidatos precisam ter acesso integral aos pareceres produzidos pelas bancas, incluindo os critérios utilizados na avaliação, a justificativa detalhada para a decisão e a possibilidade de anexação de documentos e fotos nos recursos administrativos. Isso vai garantir a segurança jurídica dos concursos e possibilitar o exercício do direito de defesa de quem for rejeitado para as vagas destinadas às cotas raciais. Os membros da banca de heteroidentificação precisam ter experiência na temática racial. É fundamental também assegurar a composição diversa dos colegiados, com a inclusão de representantes da sociedade civil e especialistas na matéria.
Para evitar arbitrariedades e injustiças, é imprescindível o registro audiovisual das sessões de avaliação, defende a nota técnica. O mecanismo reforça a transparência do procedimento e possibilita revisões posteriores em casos de recurso. “Além disso, recomenda-se a criação de instâncias de mediação e revisão para nova análise quando houver indícios de erro ou inconsistência, bem como a capacitação contínua dos avaliadores”.
A PFDC e a DPU sugerem que, em futuros concursos, o processo de heteroidentificação seja acompanhado de forma permanente, incluindo auditorias independentes, especialmente quando houver altas taxas de impugnação, e canais de denúncia acessíveis a candidatos e entidades, permitindo a contestação de irregularidades. Os órgãos lembram ainda que, para garantir a efetividade da política pública, todo o processo de heteroidentificação deve observar, rigorosamente, os princípios constitucionais da igualdade, inclusão social, contraditório e ampla defesa, além do dever de motivação dos atos administrativos.
Denúncias – A PFDC e a DPU receberam inúmeros relatos de candidatos rejeitados sem qualquer justificativa, apenas com a resposta “não enquadrado”, e da negativa de disponibilização dos pareceres da banca e das fotos tiradas no momento da heteroidentificação, sob o argumento de que as informações seriam sigilosas à luz da Lei de Acesso à Informação. Houve informações de restrições ao exercício do contraditório e da ampla defesa, com formulários eletrônicos para recurso inadequados e que não permitiam o envio de arquivos e documentos; indícios da exclusão sistemática de negros não retintos; e falta de divulgação prévia dos currículos dos integrantes das bancas, o que ocorreu apenas na véspera da avaliação.
No curso da apuração, diante das informações levantadas, a PFDC recomendou que o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e a Fundação Cesgranrio, responsáveis pelo CNU, suspendessem a divulgação dos resultados finais do certame até a reavaliação das situações de não enquadramento na cota racial. Foram indicadas ainda medidas como a reabertura de prazos para recurso e a revisão dos procedimentos do concurso para evitar falhas que comprometam os princípios da isonomia e da inclusão social. As propostas, no entanto, não foram acatadas, e o Ministério manteve o cronograma de divulgação do resultado.
Fonte MPF