Indígenas
19 de Abril de 2025 às 9h0
Quando a Terra fala: os povos indígenas na linha de frente da crise climática
MPF celebra o Dia dos Povos Indígenas com reportagem sobre o papel dos povos originários no enfrentamento da crise climática

Arte: Comunicação/MPF
Em 1500, Pedro Álvares Cabral navegou até a América e encontrou um território verde, amarelo e azul anil. Rico em natureza, de clima tropical, totalmente diferente do conhecido “velho mundo” europeu. Nele, já vivia uma civilização culturalmente própria, complexa, excêntrica e de difícil compreensão para os portugueses. A história dos povos indígenas brasileiros que contam os livros didáticos perpassa por diversas camadas de força e resistência. Donos da terra, os indígenas viram seu lar ser reduzido a pó e concreto durante séculos. Hoje, seguem defendendo o reconhecimento de seu direito a permanecerem no território de seus antepassados e se dedicam a preservar seus saberes ancestrais.
Uma população estimada em cerca de 5 milhões de habitantes surpreendida pela chegada de um grupo estranho à sua cultura e que, em pouco tempo, tomaria para si um território cultivado a milênios sob a perspectiva colonial do “descobrimento”. Segundo estimativa do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, hoje há cerca de 1,7 milhão de indígenas no Brasil, o equivalente a menos de 1% da população total. No entanto, mais de 500 anos após o início da história do país como o conhecemos, é fundamental entender que são esses povos a peça chave para o enfrentamento do maior problema da contemporaneidade: a crise climática.
Em meio à devastação ambiental que avança, os povos originários erguem suas vozes para proteger a vida e os territórios sagrados. Nesta reportagem especial em homenagem ao Dia dos Povos Indígenas, celebrado neste 19 de abril, o Ministério Público Federal (MPF) dá voz a quem há séculos escuta a floresta — e aponta caminhos para enfrentar as mudanças climáticas com justiça e sabedoria ancestral.
Em 2025, ondas de calor intensas, secas prolongadas, inundações, derretimento acelerado de geleiras acendem um alerta para a população mundial: estamos próximos de cruzar os limites irreversíveis da crise climática. O aquecimento global, impulsionado pelo acúmulo de gases do efeito estufa na atmosfera — sobretudo o dióxido de carbono (CO₂) — exige ações urgentes e coordenadas em escala mundial. Enquanto líderes globais se reúnem em conferências para debater políticas e metas climáticas, a força silenciosa dos povos indígenas é o que mantém a floresta de pé há séculos.
“A gente aprendeu muita coisa. O homem branco pegou muito da gente. Nosso criador ensinou muita coisa para os indígenas, mas os portugueses chegaram aqui e começaram a nos matar”. O desabafo é do cacique Raoni Metuktire, que aos 93 anos é uma das principais lideranças indígenas do Brasil. Ele pertence ao povo Kayapó, do território do Xingu, no Mato Grosso, e se destaca há décadas como símbolo da luta pelos direitos dos povos originários e pela preservação da Amazônia. Apesar da idade avançada, segue atuante e revela suas preocupações com as mudanças climáticas e com as próximas gerações.
Segundo ele, ações como o desmatamento desenfreado geraram consequências severas na vida da população como um todo, inclusive dentro dos territórios indígenas. “Já estamos vendo os impactos: tem rio secando, floresta muito seca, lugares com inundações. Eu fico preocupado e gostaria muito que nós, indígenas, falássemos cada vez mais sobre isso, para que chegue até os brancos, às autoridades, para que eles também tomem consciência de que é importante preservar”, refletiu Raoni.
A perspectiva indígena sobre as mudanças climáticas revela a preocupação desses povos com a insegurança alimentar, meios de subsistência, saúde, migração forçada e perda dos meios para manter tradições ancestrais. “Nossa vivência com a natureza vai além da relação entre seres humanos e a natureza: temos uma conexão com a espiritualidade e com toda a nossa existência — desde a geração até a velhice. Hoje, vemos tudo isso sendo desmontado, desestruturado”, refletiu o cacique Ninawa Inu (45), liderança do povo Huni Kui, do Acre.
Segundo ele, quando as mudanças climáticas afetam a comunidade, não é apenas a vida que muda, mas a história, a relação com a terra, com a água, com os animais. “É uma mudança forçada, um crime que é sistematicamente organizado. Muitas vezes, nossa sabedoria é criminalizada e ao mesmo tempo a sociedade diz que a solução do planeta está nas mãos dos povos indígenas. Os povos indígenas já estão contribuindo para o equilíbrio ecológico, para a biodiversidade e para enfrentar as mudanças climáticas”, afirmou.
A comunicadora indígena Daiara Hori Figueroa (43), do povo Tukano do Amazonas, também alerta para os impactos generalizados da crise climática em todos os biomas brasileiros. “As nossas culturas acompanham o ritmo do rio, das piracemas, da frutificação dos alimentos. Então, o impacto das mudanças climáticas toca diretamente, por exemplo, a nossa soberania alimentar — o tempo das roças vai mudando. Existem regiões que enfrentam grandes secas ou grandes enchentes, além, claro, dos incêndios, que têm aumentado a cada ano”, relata.
Os relatos dos povos indígenas se confirmam em números. Dados de 2023 do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar revelam que 27,6% dos domicílios brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar. Essa questão se entrelaça com o ciclo de desestruturação causado pelas mudanças climáticas. O número de queimadas em terras indígenas bateu recordes nos últimos anos. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foram registrados aumentos significativos nos focos de incêndio em terras indígenas, afetando diretamente o modo de vida tradicional, a biodiversidade e os territórios sagrados.
As consequências são sentidas também no deslocamento forçado de comunidades inteiras. De acordo com relatório da Organização Internacional para as Migrações (OIM), entre 2019 e 2023 houve um crescimento contínuo na migração forçada de povos indígenas causada por degradação ambiental, empreendimentos econômicos e conflitos fundiários. Um reflexo dessa realidade está na história de Yarikazu Xipaia (29), jovem liderança indígena do povo Aiipirnã, do Pará. Forçada a deixar a região onde vivia por conta dos impactos causados pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, a jovem expressa angústia sobre as perspectivas de futuro. “Eu me preocupo muito com a possibilidade de formar uma família, porque não sei como estará o planeta daqui a dez anos. O que vivi na infância já foi destruído. E quem vem depois de mim talvez nem conheça o que eu conheci”, lamenta.
Precisamos investir em projetos dentro das comunidades indígenas que promovam a autonomia desses povos. Pensar projetos adaptados à realidade de cada povo, que fortaleçam sua independência e autonomia”, refletiu.
Para Yarikazu, é indispensável que os povos indígenas sejam protagonistas nas pautas voltadas ao enfrentamento da crise climática, uma vez que são os primeiros a serem impactados por ela. “Fala-se sobre financiamento climático, sobre justiça climática, mas sem a presença efetiva dos povos indígenas nas discussões.
Relatórios do Instituto Socioambiental (ISA) e da Organização das Nações Unidas (ONU) mostram que as terras indígenas são as áreas mais preservadas da Amazônia. A taxa de desmatamento nessas regiões é significativamente menor do que em áreas não demarcadas. Os modos de vida tradicionais, baseados na convivência harmônica com a natureza, e o profundo conhecimento dos ciclos ecológicos tornam os povos indígenas aliados indispensáveis para frear os efeitos nocivos do uso predatório de recursos naturais.
A defesa dos interesses dessas populações é uma das atribuições do Ministério Público Federal (MPF) por determinação da Constituição Federal, assim como a articulação para garantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado para todas as gerações. Os dois tópicos estão diretamente ligados, como aponta o procurador da República Francisco Guilherme Bastos. “Pesquisas comprovam que as terras indígenas são as mais preservadas do ponto de vista ambiental. Você pode facilmente verificar isso pelo Google Earth, por exemplo, ou pelo Google Maps. Em qualquer estado do Brasil, ao identificar áreas de mata nativa, geralmente se trata de terras indígenas”, explica.
De fato, dados do MapBiomas revelam que entre 1985 e 2023, as terras indígenas demarcadas perderam apenas 1% de sua vegetação nativa, enquanto as áreas privadas registraram uma perda de 28% no mesmo período. Além disso, esses territórios contribuem também para o armazenamento de carbono. No Brasil, estima-se que as terras indígenas possam evitar a emissão de 31,8 milhões de toneladas anuais de carbono. “Os povos indígenas são a solução [para a crise climática]. A demarcação dos territórios indígenas é uma parte essencial dessa solução”, defende a procuradora da República Márcia Zollinger.
“É muito importante que a gente crie condições para que essas populações continuem no meio ambiente que elas mesmas construíram e aprenderam a respeitar. Até porque as catástrofes climáticas acabam sempre atingindo essas populações, que são mais vulneráveis e dependem da floresta e do rio. Elas construíram seu modo de vida em harmonia com a floresta”, defende a subprocuradora-geral da República e coordenadora da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), Eliana Torelly.
Apesar de serem peça fundamental para a proteção do meio ambiente, os povos indígenas seguem lutando para alcançar a efetividade de seus direitos e ter voz ativa nas decisões sobre seus territórios e estratégias de preservação da natureza. Segundo informações da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), atualmente o Brasil possui 764 terras indígenas em diferentes estágios do processo de demarcação. Dessas, 448 já foram homologadas ou regularizadas, as demais encontram-se em fases que variam desde estudos iniciais até a declaração oficial de território tradicional.
A ausência de demarcação expõe as comunidades indígenas a diversas ameaças, incluindo invasões, conflitos fundiários e a própria degradação ambiental. Segundo o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), referente ao ano de 2022, foram registrados pelo menos 180 casos de assassinatos de indígenas, 308 invasões possessórias, 158 casos de conflitos territoriais envolvendo comunidades inteiras, garimpeiros, madeireiros, grileiros e grandes empreendimentos.
Proteger os povos indígenas, defender seus direitos e dialogar com a sociedade sobre a importância do seu papel para a sociobiodiversidade é o caminho certeiro para o futuro. Para a jovem Yarikazu, a mensagem que chega é a de um mundo em calamidade anunciado há séculos pelos povos tradicionais. Garantir a autonomia e independência deles é fundamental para reverter esse cenário. “Me preocupo bastante com o futuro da humanidade em geral. Porque sabemos que garantir a floresta em pé também é garantir o futuro das próximas gerações”, concluiu.
Do alto de seus 93 anos, o cacique Raoni reforça que a confirmação do direito à territorialidade dos povos originários é uma via para o caminho da paz.
Fonte MPF