Seleção desrespeitou reserva legal de vagas para negros e pessoas com deficiência; recurso pede retificação do resultado
O Ministério Público Federal (MPF) recorreu ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) para que o Conselho Regional de Química da 3ª Região (CRQ-III) retifique o resultado do concurso público regido pelo Edital nº 01/2019, realizado no Rio de Janeiro. O recurso pede a correção de ilegalidades no certame e o cumprimento integral das leis de cotas raciais e para pessoas com deficiência, com a nomeação de candidatos cotistas que não foram contemplados pelo resultado final. O MPF também requer a adequação de futuros editais às normas sobre cotas.
No recurso, o MPF sustenta que o CRQ-III aplicou de forma inadequada a reserva de vagas prevista na Lei nº 12.990/2014 e no Decreto nº 9.508/2018. Segundo o órgão, o fracionamento artificial das vagas por especialidade impediu a aplicação das cotas, o que compromete a legalidade do concurso e a política de inclusão prevista na legislação federal.
Reserva de vagas – Para o MPF, ao considerar legítimo o cálculo das vagas reservadas com base na divisão por especialidade, e não sobre o total das vagas previstas no edital, a sentença violou decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41, a Corte reconheceu que é obrigatória a aplicação dos percentuais de reserva de forma ampla, independentemente da forma de estruturação do concurso.
“A divisão das vagas por especialidade não pode ser usada como subterfúgio para descumprir a política pública de ação afirmativa. A reserva de cotas deve considerar o total de vagas oferecidas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal, e não ser diluída por critérios internos criados pela administração”, afirma o procurador regional dos Direitos do Cidadão adjunto Julio Araujo, que assina a apelação.
O MPF pede, entre outras medidas, a publicação das listas classificatórias específicas para candidatos negros e com deficiência e a nomeação de aprovados que foram preteridos indevidamente. Também requer que, em futuros certames, o Conselho respeite os percentuais mínimos de 20% para pessoas negras e 5% para pessoas com deficiência, como determina a lei.
Irregularidades – O concurso ofertou dez vagas para o cargo de analista superior, divididas em dez especialidades diferentes, cada uma com apenas uma vaga de ampla concorrência. Com isso, não foram destinadas vagas a cotistas, sob o argumento de que o número de vagas por especialidade não permitia a aplicação das cotas. No entanto, o MPF argumenta que a reserva deve ser calculada com base na totalidade de vagas ofertadas por cargo, independentemente da divisão interna.
Para o cargo de profissional de suporte técnico, das cinco vagas ofertadas, apenas uma foi reservada a candidatos autodeclarados negros – número inferior aos 20% exigidos quando há três ou mais vagas.
“A tentativa de justificar o descumprimento da cota com base na divisão por especialidades contraria decisões vinculantes do STF, especialmente a ADC nº 41, que deixa claro que o cálculo deve ser feito sobre o total de vagas do edital”, explica o procurador Julio Araujo.
Legislação recente – Além de ferir a legislação vigente à época do concurso, a prática também viola a Lei 15.142/2025, que reforça que o cálculo das cotas deve se dar com base na totalidade das vagas ofertadas, inclusive em concursos organizados por especialidade. A norma foi editada enquanto a ação tramitava e passou a regulamentar de forma mais clara a política de cotas e confirmou que a reserva deve ser calculada sobre o total de vagas do edital, inclusive para futuras vagas que surjam durante a validade do certame.
“Mesmo que a nova lei não regule diretamente o concurso do Conselho Regional de Química da 3ª Região, ela consolida a interpretação correta já adotada pelo STF: o cálculo das cotas deve considerar a totalidade das vagas. Isso reforça nossa tese e mostra que não se trata de novidade, mas de correção de um desvio”, acrescenta o procurador.
Entenda o caso – A ação civil pública tem origem no Inquérito Civil nº 1.30.001.002055/2022-73, instaurado para apurar o descumprimento das cotas no concurso do CRQ-III. O MPF verificou que o edital não apresentou listagens específicas de cotistas e organizou o certame de forma que inviabilizou a aplicação plena da política afirmativa, criando injustiças no provimento dos cargos.
Na petição inicial, o MPF pediu a retificação do resultado final, com publicação das listagens de candidatos negros e com deficiência, mesmo após o fim da validade do concurso. Solicitou ainda que o CRQ-III fosse obrigado a nomear candidatos cotistas aprovados conforme a ordem de classificação e a garantir a reserva legal de vagas em futuros certames.
O MPF também requereu a imposição de multa diária em caso de descumprimento da decisão, para garantir a efetividade da tutela.
“A política de cotas visa corrigir desigualdades estruturais no acesso ao serviço público. É dever das instituições assegurar sua aplicação efetiva e transparente, respeitando os direitos de todos os candidatos”, ressalta o procurador.
Processo nº 5059503-52.2024.4.02.510
Fonte MPF