Recomendação propõe devolução do imóvel à União para preservar a história das vítimas da repressão e garantir tratamento de documentos
O Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) e à Secretaria do Patrimônio da União (SPU) que adotem, no prazo de 60 dias, as providências necessárias para reverter ao patrimônio da União o imóvel do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). O prédio, situado na Rua da Relação, nº 38/40, no centro do Rio de Janeiro, deve ser destinado à criação de um centro de memória em defesa dos direitos humanos e dos grupos sociais vítimas da violência de Estado cometida naquele local.
Pertencente originalmente à União, o imóvel foi doado ao extinto Estado da Guanabara na década de 1960, sob a condição de uso para fins policiais e com obrigação de preservação. Entretanto, o prédio não cumpriu sua destinação e está abandonado há mais de quinze anos, em estado de conservação precário. Segundo a recomendação do MPF, um parecer técnico do MDHC concluiu que as condições da cessão foram descumpridas, o que justifica a reversão do imóvel ao patrimônio federal.
A recomendação é resultado de um inquérito civil público instaurado em março de 2024, a partir de representação do coletivo RJ Memória Verdade Justiça e Reparação. Em 17 de junho daquele ano, o MPF coordenou uma visita técnica ao imóvel, com a presença de representantes de diversas instituições e constatou o estado crítico de deterioração do imóvel. No entanto, também foram identificados elementos de memória ainda preservados, como antigas carceragens e documentação original. O diagnóstico reforçou a urgência de medidas concretas para garantir a integridade da estrutura física e do acervo documental.
“A transformação desse espaço em um centro de memória é uma medida de justiça e reparação histórica”, afirma o procurador regional dos Direitos do Cidadão adjunto Julio Araujo. Segundo ele, preservar esse imóvel é afirmar o compromisso do Estado brasileiro com a verdade, a democracia e os direitos humanos”. Para o procurador, “locais como o antigo Dops não podem ser esquecidos ou apagados. Eles precisam ser ressignificados como espaços de resistência, lembrança e aprendizado para as futuras gerações”.
Articulação institucional e preservação do acervo – A recomendação do MPF também pede que o estado do Rio de Janeiro e a Polícia Civil não imponham obstáculos à atuação da União no imóvel e garantam o acesso imediato e permanente para as ações necessárias de preservação. Durante a tramitação do inquérito, a Secretaria de Estado de Polícia Civil do Rio de Janeiro (Sepol) admitiu não ter condições de adotar medidas de preservação e demonstrou disposição para o diálogo. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) também expressou interesse em firmar acordo com o governo estadual para viabilizar a transformação do prédio em centro de memória, com apoio e financiamento.
Uma das frentes prioritárias do inquérito civil tem sido garantir o recolhimento e o tratamento da documentação histórica do Dops, que registra a perseguição política, a tortura e as violações de direitos durante o regime militar. O processo de transferência do acervo para o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj) está em curso, conforme previsto pela Lei Estadual nº 2.027/1992, que assegura a guarda e a consulta pública dos documentos.
A medida foi viabilizada por meio da criação, em julho de 2024, do Grupo de Trabalho Dops (GT Dops), além da mediação entre o MPF e a Sepol, que resultou em acordo para o recolhimento do material histórico.
“Com a recomendação, o MPF pretende assegurar uma solução definitiva para a proteção do imóvel, de seu acervo histórico e da memória das vítimas das graves violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar”, conclui Julio Araujo.
A relevância de espaços como esse já foi reconhecida por órgãos como a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro e o Relator Especial da ONU sobre a Promoção da Verdade, Justiça e Reparação. A mobilização histórica de movimentos sociais e o impacto do documentário Ainda Estou Aqui também reacenderam o debate público sobre a destinação do prédio.
Memória, repressão e abandono – O edifício tem profundo valor simbólico, histórico e político. Sede da Polícia Central desde o início do século XX, foi um espaço importante de onde saíram políticas de criminalização da população negra no pós-abolição, por vadiagem, capoeiragem e outros crimes. A perseguição de religiões de matriz africana gerou apreensões de objetos sagrados cuja liberação só foi possível em 2020, após a Campanha Liberte Nosso Sagrado e atuação do MPF. O prédio abrigou também a polícia política na Era Vargas e o Dops na ditadura militar.
Desde 1987, o imóvel encontra-se tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), devido ao seu papel na repressão política e às graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar. Processos de tombamento definitivo tramitam atualmente tanto no Inepac quanto no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), para a criação de um espaço permanente de memória e resistência.
Inquérito Civil nº 1.30.001.001121/2024-50
Fonte MPF