MPF promove roda de conversa sobre racismo estrutural no RJ — Procuradoria da República no Rio de Janeiro

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“A dor ainda está aqui. Ela não passou.”

Foi com essa frase que Joelma Feitoza, encarregada da equipe de terceirizados, abriu um dos momentos mais marcantes da roda de conversa sobre racismo estrutural, realizada no auditório do Memorial da Procuradoria da República no Rio de Janeiro (PR/RJ). Mulher preta, mãe e moradora de comunidade, ela compartilhou um relato pessoal e devastador, que silenciou a sala e emocionou profundamente os presentes.

Durante uma operação policial em sua comunidade, sua casa foi invadida por agentes armados. “Fiquei uma hora e quinze sendo torturada por um homem que se dizia policial. Com meus filhos pequenos do lado de fora, e eu ali, sozinha”, contou. O medo, segundo ela, nunca foi embora. “Hoje eu sou uma mãe que não deixa o filho sair sem identidade. Peço pra avisar cada passo. Porque eu sei que o mundo não perdoa a cor da pele dele.”

O evento foi promovido pela Comissão Pró-Equidade de Raça e Gênero da Procuradoria da República no Rio de Janeiro e conduzido pelo procurador Stanley Valeriano, um dos articuladores da iniciativa. A proposta, como destacou, era mais que ouvir uma palestra: era criar um espaço de troca e escuta ativa, onde todos tivessem algo a dizer e compartilhar. A convidada principal foi a servidora Patrícia Fernanda dos Santos, fundadora do Coletivo Negro da Justiça Federal, premiado e reconhecido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como boa prática na promoção da equidade.

Do lar da patroa ao protagonismo institucional: a trajetória de Patrícia

Com generosidade e força, Patrícia compartilhou sua história. Filha de empregados domésticos — termo que ela própria critica por carregar uma ideia de subjugação —, cresceu numa casa de patrões, onde vivenciou a desigualdade desde cedo. “Como é que a gente fala que vai domesticar uma pessoa?”, questionou.

A educação foi uma prioridade imposta pelos pais. Formou-se em Direito e, ao ingressar na universidade, percebeu o que chamou de “muita luz branca e pouca representatividade”. Foi nesse despertar que fundou, anos depois, o Coletivo Negro da Justiça Federal, hoje reconhecido nacionalmente.

Patrícia reforçou a importância da ancestralidade como motor de resistência: “Carrego meus pais, meus avós, pessoas que nem conheci, mas que lutaram por eu estar aqui hoje.” Ela também leu trechos de Maria Firmina dos Reis, Sojourner Truth e do poema “Negra”, da escritora Shirley Campbell Barr, que emocionaram e ampliaram a reflexão sobre o papel das mulheres negras na história — silenciado por séculos.

O racismo como estrutura — e não exceção

As falas da roda de conversa tornaram evidente o que as estatísticas já escancaram: o racismo no Brasil não é pontual, é estrutural. Patrícia foi enfática ao lembrar que a abolição da escravidão não foi sucedida por políticas de inclusão social. E depois disso? “Sem terra, sem emprego, sem escola. Apenas a continuidade da exclusão.”

A violência, o desemprego, a falta de creche, a precariedade dos serviços públicos e a brutalidade policial afetam desproporcionalmente a população negra. Casos como o de um adolescente de 15 anos, fotografado pela polícia sem motivo ou passagem criminal, foram apontados como exemplos da criminalização precoce dos corpos pretos.

Mães negras relatam viver em estado permanente de alerta, proibindo filhos de sair com certas roupas, exigindo que levem identidade, e monitorando cada passo. “Uma mãe de criança preta não tem um minuto de paz”, resumiu uma das participantes.

Desnaturalizar para resistir

A palavra que ficou ao final do encontro foi “desnaturalizar”. Desnaturalizar o uso de termos como “denegrir”, desnaturalizar o medo como rotina, desnaturalizar os padrões eurocêntricos que inferiorizam a estética e a cultura negra. “Não é mimimi. É sobrevivência”, declarou uma das mulheres presentes.

O procurador Stanley Valeriano destacou o papel das instituições na transformação social: “Só avançamos como sociedade se estivermos dispostos a ouvir com empatia, refletir com profundidade e agir com coragem. A justiça precisa estar atenta às vozes historicamente silenciadas.”

Um encerramento em forma de manifesto

A leitura do poema “Negra”, de Shirley Campbell Barr, feita por duas mulheres negras, encerrou o evento como um brado de afirmação e resistência:

“Negra. Sim. Negra sou. De hoje e de antes. E avanço segura, e avanço e bendigo aos céus.”

Não foi apenas um poema — foi um manifesto vivo de identidade, dignidade e potência coletiva.

Rodas de conversa: espaço permanente de transformação

A roda de conversa integra a programação regular promovida pela Comissão Pró-Equidade de Raça e Gênero da PR/RJ, criada em 2018 por meio da Portaria PR/RJ n° 56/2018. Com o compromisso de transversalizar os temas de gênero e raça nas instituições públicas, a comissão realiza encontros mensais, sempre na última quarta-feira de cada mês, com a participação de membros, servidores, estagiários e terceirizados.

“Mais do que eventos, as rodas têm se consolidado como espaços de escuta, pertencimento e transformação coletiva. E como demonstrado nesta edição, são também territórios de memória, coragem e esperança”, destacou o procurador.

Fonte MPF