Controle Externo da Atividade Policial
19 de Dezembro de 2025 às 15h35
Mulheres e violência estatal: MPF participa de audiência pública na Alerj
Semanas após a operação altamente letal na Penha e no Alemão (RJ), debate reúne representantes de entidades, movimentos sociais e instituições públicas

Fotos: Thiago Lontra/Alerj
O Ministério Público Federal (MPF) participou, na última semana, da audiência pública “Mulheres e violência estatal”, promovida pela Comissão Direitos da Mulher, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). O debate ocorreu apenas algumas semanas após a chacina do dia 28 de outubro nas comunidades da Penha e do Alemão, e, coincidentemente, em meio à onda de feminicídios que escalou no país nas últimas semanas. Participaram do debate representantes de diversas entidades, movimentos e instituições públicas.
A deputada Renata Souza (PSOL-RJ), autora da convocação, abriu os trabalhos da audiência manifestando solidariedade às famílias das mulheres vítimas de feminicídio. “Eu não poderia iniciar essa audiência da comissão sem antes me pronunciar sobre essa epidemia de feminicídio que tem acabado com a vida das nossas mulheres. Ainda nem acabou o ano e já temos pelo menos mil mulheres vítimas de feminicídio e 2.700 mulheres vítimas de tentativa de feminicídio. É uma situação extremamente limite essa que a gente está vivendo, de acirramento da violência contra a mulher e da violência letal também. Nesse sentido, nós aqui queremos solidarizar com as famílias enlutadas”, declarou a parlamentar.
Compuseram a mesa, ao lado da deputada, além do representante do Ministério Público Federal (MPF), Eduardo Benones – único homem sentado na bancada, algo que foi notado no decorrer da audiência –, representantes do Instituto Fogo Cruzado, Redes da Maré, Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave), Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e Conselho Regional de Psicologia.
Violência continua após a chacina – Antes de abrir para as falas dos integrantes da bancada, a parlamentar relembrou os acontecimentos dramáticos recentes. “Diante de um cenário de chacina com diversas violações de direitos, no dia seguinte à operação, quando ainda várias pessoas estavam desaparecidas, um cenário de mais violência: mulheres, mães, irmãs, tias, seguiam em busca de corpos dos seus entes, dos seus familiares. Além das mortes causadas pela ação do Estado, foi deixado no colo da sociedade, representada pelas mães, encontrar os corpos dos seus filhos. E não parou por aí: ao buscar o Instituto Médico Legal (IML) para reconhecimento dos corpos, mais uma escalada de violência”.
O atendimento no IML foi um tópico importante no debate, uma vez que atinge diretamente as mulheres, grupo majoritário na busca pelos corpos de vítimas de operações. Para Lidiane Helena, assistente social da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e integrante da equipe técnica de serviço social da Raave, é preciso pensar também como os serviços e as instituições públicas que fazem parte do Estado estão corroborando com essa violência, para além das operações policiais.
“Nós fizemos plantão no IML todos os dias depois do massacre da Penha/Alemão. O massacre foi numa terça-feira, na quarta de manhã nós já estávamos no IML, permanecemos lá até domingo, até o dia que o último corpo foi reconhecido, e lá nós percebemos de forma muito clara como essa continuidade da violência aparece. As mães, as avós, as irmãs, as companheiras estiveram lá para reconhecer os corpos daqueles jovens, daquelas pessoas, e muitas delas ficaram lá de quarta a domingo para conseguir reconhecer o corpo. Muitas delas foram impedidas de ver pessoalmente os seus entes queridos, apenas assinaram papéis”, conta a assistente social.
Para Patrícia Carvão, do Núcleo de Apoio à Vítima (NAV) do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, é necessário fomentar políticas públicas de atendimento a esses familiares também no IML. “O que a gente percebe é de fato um sofrimento enorme, principalmente das mulheres, que são as que ficam. Havia homens, mas o grupo predominante era de mulheres num desespero imenso, na busca de informações pelos seus corpos. E uma das conclusões a que nós chegamos é que precisa haver um olhar mais atento do Ministério Público no fomento da política pública de atendimento desses familiares também no IML, porque é um momento da mais alta dor”, concluiu a procuradora de Justiça do MPRJ. Ela relatou que, por ocasião da operação do dia 28 de outubro, o órgão realizou perícia independente de cada corpo e ofereceu assistência psicológica e jurídica às famílias.
Números da violência – Para Iris Rosa, pesquisadora do Instituto Fogo Cruzado, quando se fala em violência armada, a violência contra a mulher é constantemente invisibilizada. “Em geral, o perfil da vitimização é de jovens negros. E ao longo de 2025, o Instituto Fogo Cruzado registrou, apenas na Região Metropolitana do nosso estado, 1.619 de disparos de arma de fogo, entre mortos e feridos. Isso é uma média altíssima de 33 pessoas baleadas por semana na Região Metropolitana do Grande Rio só no ano de 2025”, relata a pesquisadora, que enfatiza a forma como essa violência indiretamente afeta a vida das mulheres.
“Trata-se de uma rotina de tiroteios que, além de gerar centenas de vítimas, impacta diretamente a vida das mulheres, impossibilitando que as mães levem seus filhos para a escola, suspendendo os atendimentos médicos, fazendo com que essas mulheres não consigam cuidar da sua saúde, da saúde dos seus filhos, da saúde da sua família – porque a gente sabe que as mulheres são cuidadoras das suas famílias. Também, linhas de transporte são interrompidas pelos constantes tiroteios, fazendo com que essas mulheres não consigam chegar até o seu local de trabalho em segurança, e isso compromete a sua renda, a renda da sua família, e coloca sua vida em risco”, explica Iris Rosa.
Além disso, ela lembra que as mulheres são também afetadas diretamente. “Ao longo de 9 anos, o Fogo Cruzado já registrou 1.391 mulheres baleadas no Grande Rio – quatro em cada 10 morreram. Do total de baleadas, 39% foram baleadas durante ações e operações policiais, vítimas de bala perdida. Apenas em 2025, 28 mulheres foram baleadas nessas circunstâncias”, declarou. “Essa violência armada que tanto atravessa a vida das mulheres é, em grande parte das vezes, motivada por ações policiais: 40% dos tiroteios monitorados pelo Fogo Cruzado no ano de 2025 aconteceram motivados por ações e operações policiais. Então são ações promovidas por agentes do Estado, o que faz com que a vida das mulheres fluminenses não esteja assegurada”, completou a pesquisadora.
Tainá Alvarenga, coordenadora do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da entidade Redes da Maré, relatou o que vem sendo acompanhado na Maré e enfatizou a relevância dos dados devido à magnitude da comunidade, que conta com 120 mil moradores (IBGE 2022), possui território maior do que 90% das cidades brasileiras e abrange 2 a cada 46 moradores da cidade do Rio de Janeiro. “A Maré é um lugar de múltiplas lutas, resistência, mobilizações, uma vasta rede de organizações comunitárias, e histórias de vida potentes”, declarou.
“O que acontece lá e o que a gente vem monitorando lá serve para se capilarizar para outras áreas da cidade e pra gente pensar num contexto maior de impacto da violência armada, da violência de Estado na vida de todas as populações e fazendo um recorte muito específico na vida das mulheres, que não são tão atingidas diretamente, no sentido dos homicídios e das execuções que nós acompanhamos, mas também são vítimas indiretas”, lembrou a pesquisadora.
Gênero e raça – A representante da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, Raiza Palmeira, lembrou o marcante recorte de raça que essas violências carregam. “Enquanto são as maiores vítimas de violência doméstica e sexual, as mulheres negras também são as que mais sofrem com a violência direta e indireta do aparato de segurança pública. Elas vivenciam o luto e a destruição familiar decorrentes do genocídio da juventude negra e o encarceramento feminino cresce de forma desproporcional entre elas. […] Devido ao racismo estrutural, as mulheres negras enfrentam a maior dificuldade em acessar o sistema de saúde e o sistema de justiça”, afirmou.
Para Sonia Eyleen, do Centro Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do MPRJ, é essencial promover capacitações de gênero no âmbito das forças policiais. “Para 2026, estamos já capacitando, para além da Patrulha Maria da Penha, os integrantes dos batalhões com relação à perspectiva de gênero e interseccional – porque a gente sabe que quanto mais camadas de vulnerabilidade, pior é a violência para as mulheres – então, mulheres negras periféricas são mais vítimas de violência de gênero em todas as esferas”, lembra.
Também tiveram falas na mesa Fabiana Silva, ouvidora-geral da Defensoria Pública Estadual, Luciene Lacerda, coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (RJ), além do procurador da República Eduardo Benones, coordenador de Controle Externo da Atividade Policial no MPF no Rio de Janeiro.
Para Benones, são três os eixos que se articulam para sustentar a violência contra a mulher nas comunidades fluminenses. “A primeira coisa é a construção da fragilidade. A violência simbólica não é uma consequência da violência de gênero. Ela é uma condição de possibilidade da violência de gênero, da violência contra a mulher”. Ele explica que o segundo momento é a captura dos filhos dessas mulheres pelo tráfico e o terceiro, a execução de seus filhos, muitas das vezes pelo próprio Estado, que, portanto, fica omisso.
O procurador ressaltou a importância de, nesses casos de graves violações, se dar uma resposta à sociedade e, principalmente, a essas mulheres que perdem seus entes queridos. “Tivemos a pronúncia, há 20 dias, do policial que atirou na Heloísa, e, na sexta-feira (5), do policial que atirou na Anne Carolinne. Os dois vão a júri. O que é importante nisso? Que o sistema vai funcionar, o devido processo legal vai ser aplicado, inclusive os policiais poderão se defender, e serão submetidos ao júri – que é o que nós queremos”, afirmou o procurador.
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Fonte MPF


