Direitos do Cidadão
10 de Setembro de 2024 às 12h30
Educação e segurança: MPF defende necessidade de reparação a estudantes em caso de operações policiais
Tema foi debatido em seminário promovido pela Redes Maré na última semana
Redes Maré
“Quinto dia sem o caderno aberto, o livro fechado, a mente a vagar. Lá fora, o som é duro, deserto. Operações que não deixar estudar”. Este é um trecho do poema que Ana Beatriz Alves do Nascimento escreveu para expressar suas angústias como estudante diante da falta de aulas ocasionadas pelas operações.
“Sinto medo de ir à escola, principalmente por ser uma mulher negra, então o cuidado sempre é dobrado. Minha mãe auxilia dizendo o que devo fazer caso aconteça algo e me manda para a escola, mas sempre preocupada”, conta Ana Beatriz, 17 anos, que cursa o terceiro ano do ensino médio na escola César Pernetta. Ela foi uma das presentes no“5º Seminário de Educação da Maré: impactos da violência armada no direito à educação”, promovido pela Redes da Maré nos dias 27 e 28 de agosto. A Redes da Maré é uma instituição da sociedade civil que produz conhecimento, projetos e ações, através de cinco eixos de trabalho estruturais, em busca de qualidade de vida e garantia de direitos para os mais de 140 mil moradores das 15 favelas da Maré.
O evento reuniu pesquisadores, operadores do direito, movimentos sociais e moradores da Maré, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Palco de operações policiais que se intensificaram nas últimas semanas, a Maré compreende 15 comunidades cariocas e abriga milhares de crianças, adolescentes e adultos cujas rotinas escolares têm sido interrompidas diariamente pelo medo e pela insegurança. Na última terça-feira (3/9), por exemplo, operações causaram o fechamento de 38 escolas.
Representando o MPF, o procurador regional dos Direitos do Cidadão adjunto Julio José Araujo Junior integrou a mesa “Desafios para a garantia da efetividade do direito à educação e à segurança pública”, ao lado da representante da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Eufrásia Maria Souza das Virgens, do pesquisador Rogério Barbosa (Instituto de Estudos Sociais e Políticos – Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e da pesquisadora Eblin Farage (Escola de Serviço Social – Universidade Federal Fluminense).
Julio Araujo esclareceu o papel do MPF na relação entre os direitos à educação e à segurança pública. A prevenção da responsabilidade internacional do Brasil e a necessidade de que o Ministério da Educação fixe diretrizes nacionais sobre o tema, inclusive por mecanismos de reparação, têm sido algumas das frentes de atuação. Ele apontou que a segurança pública é apontada como um argumento genérico para sustentar operações independentemente da comprovação de sua necessidade, e os dias de aula perdidos são tratados como mero efeitos colaterais.
Em contraponto a isso, o procurador defendeu que a “segurança pública” também deve ser pensada em defesa do interesse da população mais afetada pelas operações. “Precisamos discutir o direito à educação segura dos estudantes que veem suas escolas fechadas e dias perdidos. Existe uma coletividade afetada pelas operações – uma coletividade determinada e específica – que também demanda segurança. E ela quer exercer seu direito à educação, mas à educação com segurança”, afirmou.
Segundo dados do professor e pesquisador Rogério Barbosa, que integrou a mesa, apresentou estudo que constatou o Rio de Janeiro tem quase 1.500 escolas. Dessas, 575 estão em área de tráfico e 543 em área de milícia. “A gente tem, então, mais ou menos, 60% das escolas do Rio de Janeiro em áreas de grupo armado”, informou. “Quando a gente olha para a quantidade de alunos, e não escolas, o negócio fica ainda mais gritante. Veja só, 103 mil alunos de ensino básico vivem em áreas de tráfico no Rio de Janeiro [capital], e 263 mil em áreas de milícia. Além disso, há mais menos 340 mil no entorno metropolitano. Então a gente está falando de quase 1 milhão de alunos de ensino básico vivendo em áreas dominadas por grupos armados”.
Os números alarmantes apresentados pelo pesquisador mostram o grande volume de estudantes expostos a conflitos entre grupos armados e forças de segurança, indicando o tamanho do problema a ser enfrentado na capital e no entorno metropolitano do Rio de Janeiro. Na Maré, esses conflitos são significativos e apontam para um grande número de operações policiais.
Dados da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, que constam em procedimento instaurado pelo MPF apontam que, entre 2022 e o primeiro semestre de 2023, foram registradas mais de 832 ocorrências de operações policiais só na capital. As comunicações de operações às escolas são feitas, em alguns casos, via e-mail ou pelo Whatsapp. Já a PM-RJ informou que, no mesmo período, foram realizadas 522 operações em horário escolar na capital, com destaque para a Zona Norte, em bairros como Bangu, Jardim América, Madureira, Maré, Parada de Lucas, Pavuna e Penha. Números da Polícia Civil mostram que, entre janeiro de 2022 e setembro de 2023, foram comunicadas 121 operações no interior de comunidades em horário escolar.
Grupo de trabalho – O Ministério da Educação (MEC) propôs ao MPF, na semana passada, a criação de um grupo de trabalho ou comissão para discutir o tema dos impactos de operações policiais no funcionamento do sistema educacional e formas de reparação – sobretudo, aqueles relativos à suspensão de aulas e fechamento de escolas.
A sugestão da pasta é uma resposta a ofício expedido no início de agosto pelo MPF, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), à Secretaria de Educação Básica do MEC, solicitando informações relativas à existência de diretriz nacional sobre o tema. O motivo do ofício foi justamente o alto número de operações policiais realizadas na capital fluminense e região metropolitana em horário escolar, impactando diretamente na rotina de crianças e jovens.
Hoje, essa rotina de estudantes da Maré, como Ana Beatriz, segue confusa e repleta de incertezas. “Essas operações têm parado minha vida, porque estou no meu último ano, então a cobrança acaba sendo maior. Sem contar que minha rotina para e a ansiedade acaba ficando maior, porque sou uma jovem bem agitada”. A jovem agitada fala sobre seus projetos para o futuro e todos eles passam por um lugar: a escola.
“Meu plano é terminar o ensino médio, e, passando no Enem, pretendo me formar advogada, para conseguir trabalhar com as duas áreas que amo. Esse foco todo na escola tem feito uma grande mudança. A escola tem me dado muita força, apesar de estarmos passando por isso. Mas tenho fé de que isso tudo vai passar e que vamos voltar com mais resistência e resiliência”.
Quinto dia sem caderno aberto,
O livro fechado, a mente a vagar.
Lá fora, o som é duro, deserto,
Operações que não deixam estudar.
A sirene canta uma triste canção,
Enquanto paredes caem ao chão.
Casas desfeitas, sonhos ao vento,
No olhar perdido, profundo lamento.
A mesa vazia clama por atenção,
Mas o medo invade cada intenção.
O futuro incerto, escrito na areia,
Na Maré sofrida, a esperança anseia.
Vejo amigos deixando seus lares,
Bagagens de dor em tristes olhares.
Onde havia risos, agora há poeira,
Resistência se torna a nossa bandeira.
Mas dentro do peito, uma chama insiste,
De que dias melhores ainda são possíveis.
A vontade de aprender persiste,
Mesmo entre escombros, somos invencíveis.
Sonho com aulas, com páginas viradas,
Com a paz reinando nas madrugadas.
Enquanto isso, escrevo em pensamento,
Versos de força contra o tormento.
A favela chora, mas também canta,
Na união do povo, a luta se agiganta.
E eu, estudante, não vou desistir,
Pois após a tempestade, o sol há de surgir.
Por Ana Beatriz Nascimento
Assessoria de Comunicação Social
Procuradoria da República no Rio de Janeiro
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Fonte MPF