MPF aciona União por ataques da Marinha à memória de João Cândido e pede R$ 5 milhões por dano moral coletivo — Procuradoria da República no Rio de Janeiro

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Patrimônio Cultural

19 de Dezembro de 2025 às 20h5

MPF aciona União por ataques da Marinha à memória de João Cândido e pede R$ 5 milhões por dano moral coletivo

Ação aponta que manifestações da Marinha violam a lei que concedeu anistia ao Almirante Negro, o direito à memória e a justiça racial

Fotografia do marinheiro João Cândido em uma página antiga do jornal Gazeta de Notícias de 31 de dezembro de 1912.


Marinheiro João Cândido. Jornal Gazeta de Notícias de 31 de dezembro de 1912. Imagem de domínio público. Fonte: Wikipedia.

O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra a União com o objetivo de responsabilizá-la por dano moral coletivo decorrente de manifestações oficiais da Marinha do Brasil consideradas ofensivas à memória de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata. A ação busca, além da reparação econômica, impedir novos atos que desabonem a trajetória e o legado histórico do marinheiro conhecido como “Almirante Negro”.

De acordo com o MPF, as manifestações da Marinha afrontam a Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e a Lei nº 11.756/2008, que concedeu anistia a João Cândido e aos demais participantes da revolta de 1910. Para o procurador adjunto dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, Julio Araujo, que assina a ação, a anistia tem efeitos jurídicos e simbólicos concretos e impõe ao Estado o dever de respeitar e preservar a memória coletiva associada à luta pelo fim dos castigos físicos na Marinha.

Na ação, o MPF pede que a Justiça Federal declare a responsabilidade civil da União, determine que o poder público se abstenha de novas manifestações ofensivas à memória de João Cândido e condene a União ao pagamento de R$ 5 milhões por dano moral coletivo. O valor deverá ser destinado exclusivamente a projetos e ações voltados à valorização da memória do líder da Revolta da Chibata, conforme regras estabelecidas em resolução conjunta do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Inquérito – A ação tem como base elementos reunidos em inquérito civil instaurado a partir de demanda da sociedade civil para valorização da memória de João Cândido em âmbito nacional. O MPF sustenta que persistem práticas institucionais de ataque à imagem do líder da Revolta da Chibata, o que configuraria continuidade da perseguição histórica sofrida pelo marinheiro, inclusive após sua morte.

Entre os fatos destacados, está o envio, em abril de 2024, de carta do comandante da Marinha à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, manifestando oposição ao projeto de lei que propõe a inscrição de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. No documento, além de conferir tratamento adjetivado a seus líderes, a Revolta da Chibata é classificada como “deplorável página da história nacional” e “fato opróbio”, relegando, ainda, características negativas aos revoltosos. O mesmo entendimento foi reproduzido em documentos enviados ao MPF após recomendação do órgão.

As qualificações representam, segundo a ação, ataque direto à memória do anistiado e aos valores de justiça e igualdade reconhecidos pela legislação.

Diante dessas manifestações, o MPF expediu recomendação para que a Marinha se abstivesse de praticar atos que violassem a memória de João Cândido. A resposta oficial, no entanto, afirmou não haver providências a serem adotadas, sob o argumento de que as declarações refletiriam apenas a “perspectiva histórica” da instituição. Para o MPF, a posição indica intenção de manter discursos incompatíveis com a anistia legalmente concedida.

Direito à memória – Na ação, o MPF ressalta que o direito à memória é um direito assegurado na ordem constitucional, relacionado à dignidade da pessoa humana, ao direito à informação e à preservação do patrimônio histórico-cultural. O procurador destaca, ainda, que a proteção da memória de João Cândido está diretamente ligada ao enfrentamento do racismo estrutural e à valorização das lutas da população negra por cidadania e igualdade no Brasil, temas destacados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 973.

O MPF argumenta que as declarações oficiais da Marinha extrapolam os limites da liberdade de expressão, uma vez que partem de agentes públicos e contrariam normas constitucionais, legais e compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, além de precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Segundo a ação, ao desqualificar João Cândido e a Revolta da Chibata, a União viola não apenas a memória do personagem histórico, mas o direito coletivo da sociedade de conhecer e interpretar sua própria história.

Revolta da Chibata – Os açoites haviam sido abolidos formalmente na Armada em 1889, porém, o Decreto 328, de 12 de abril de 1890, havia viabilizado a Companhia Correcional na Marinha, com vistas a combater pessoas “incorrigíveis e irrecuperáveis” no tribunal do convés, formado às margens dos tribunais legais. Na prática, jovens marinheiros, na sua maioria pretos e pobres, continuaram sendo vítimas dos castigos.

Na revolta, os marinheiros exigiram o fim das “chibatadas” e denunciaram as péssimas condições de trabalho e a falta de alimentação adequada. Em 22 de novembro de 1910, após receber 250 chibatadas, um dos marinheiros desmaiou, fazendo eclodir a revolta, liderada por João Cândido Felisberto. O movimento durou quatro dias e parou o Rio de Janeiro, levando o governo da época a negociar com os rebeldes. Após a revolta, os castigos físicos foram finalmente abolidos na Marinha.

 

Ação Civil Pública nº 5138220-44.2025.4.02.5101/RJ

 

Assessoria de Comunicação Social
Procuradoria da República no Rio de Janeiro
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Fonte MPF