Geral
30 de Agosto de 2025 às 10h25
Saberes do cipó, da raiz e da reza: fé e tradição se unem para preservar cultura e identidade de comunidades tradicionais
Benzedeiros, raizeiros e cipozeiros lutam para manter viva a memória, a beleza e a espiritualidade de seus modos de viver
Ilustração: Comunicação/MPF
O carro enguiçou, a chave ficou presa na porta, o dente quebrou e o chefe deu aquela bronca, tudo na mesma semana. “Preciso de uma benzedeira, só pode ser mau-olhado”. Quem nunca pensou em pedir por uma ajudinha extra em um momento de crise? Tanto para os problemas cotidianos quanto para os males de saúde e da vida moderna, o conhecimento tradicional é evocado e reconhecido.
No entanto, essas expressões estão sendo cada vez menos repetidas ou têm se transformado em pedidos retóricos. Um dos motivos para isso é a invisibilidade a qual estão submetidas as comunidades tradicionais.
Para lutar pelos direitos desses povos o Ministério Público Federal (MPF) tem produzido e divulgado ao longo do ano uma série de matérias especiais sobre as comunidades tradicionais brasileiras. O foco do mês de agosto são as comunidades de benzedeiros, raizeiros e cipozeiros, grupos cujas existências guardam uma das expressões mais genuínas da diversidade cultural brasileira.
É no interior do país, especialmente em territórios com pouca ou nenhuma atuação do Estado, que essas comunidades praticam, há séculos, formas de cuidado e promoção da saúde popular, baseadas no saber ancestral, no vínculo com a natureza e na espiritualidade.
Mas, hoje, essas práticas tradicionais estão ameaçadas pelo avanço do desmatamento, pela desvalorização social, pela falta de políticas públicas e pela ruptura na transmissão entre gerações.
Embora compartilhem o vínculo com a terra e com o sagrado, benzedeiros, raizeiros e cipozeiros carregam, cada um a seu modo, práticas e saberes específicos, transmitidos entre gerações por meio da oralidade.
Benzedeiros e benzedeiras exercem uma função espiritual profunda. Os raizeiros são guardiões do uso terapêutico de plantas medicinais. Já os cipozeiros são especialistas no manejo de cipós com usos que vão da construção à cura, da espiritualidade ao artesanato.
Benzer vem do latim bene dicere, que significa bem dizer, dizer bem de alguém e fazer o bem. E é o que a guardiã dos saberes tradicionais do Cerrado Lucely Morais Pio benzedeira e raizeira da Comunidade Quilombola do Cedro, em Mineiros (GO) faz como ofício.
Da sua reza e do seu conhecimento sobre as ervas do Cerrado, Lucely produz cura, que é traduzida em medicamentos como xaropes, pomadas, sabonetes, pílulas, óleos e garrafadas. Os medicamentos fitoterápicos são usados para tratar uma variedade de condições, como doenças gástricas, dores articulares, problemas respiratórios, problemas de pele entre outros.
Mas a expansão dos produtos esbarra em um grande obstáculo: a falta de regulamentação sobre a medicina tradicional. “A gente pode doar os remédios, mas não pode vender. A Vigilância Sanitária não reconhece nossa prática. O fiscal não conhece o que é nosso, não sabe que nascemos e crescemos usando chá, benzeção e planta medicinal”.
Outro grande obstáculo para a manutenção da cultura é a escassez dos produtos que são a mão de obra do seu trabalho. A moradora do bioma mais desmatado do Brasil sintetiza com clareza o que está em risco. “Onde a gente colhia as plantas perto da comunidade, hoje virou pasto. Temos que andar muito mais para encontrar as espécies que usamos para fazer nossos remédios caseiros. Precisamos de uma política que nos ajude a manter o Cerrado em pé”, pede.
Lucely também aponta a ruptura geracional como fator de risco. “As pessoas mais velhas estão morrendo e os jovens quase não aprendem. Em muitas comunidades, ninguém mais sabe identificar uma planta ou fazer um remédio”.
Mas a benzedeira e raizeira não assiste a esse cenário de braços cruzados, com a ajuda da sua comunidade transformou um antigo canavial em um espaço agroecológico com mais de 170 espécies frutíferas e medicinais.
O saber de Lucely também já foi enraizado em publicações como a Farmacopeia Popular do Cerrado, que escreveu em conjunto com mais de 250 raizeiros. A pesquisa reúne uma listagem das espécies medicinais e formas de manejo. Ela também tem participação no Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado. Agora, todo esse conhecimento, busca novos corações nos quais brotar.
No entroncamento das principais rodovias que fazem a ligação norte e sul do país, está Rondonópolis, a segunda maior cidade do Mato Grosso. Polo do agronegócio e com forte industrialização, ainda há quem tente manter vivas antigas tradições.
Na Associação Araxá, Francisco Dias, conhecido como Pai Francisco, conduz rituais de benzeção. Integrante da Associação Araxá, do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais e da Rede de Povos e Comunidades Tradicionais, ele denuncia o afastamento das comunidades de seus territórios sagrados. “Estão empurrando as comunidades para as periferias, para longe das fontes sagradas. Isso é uma forma de apagamento”.
Além disso, a comunidade convive com a intolerância, o racismo religioso e as tentativas de tornar crime costumes históricos e culturais, o que tem afastado tantos jovens. De acordo com Pai Francisco, a presença do MPF ajuda a reduzir a criminalização das práticas e abre espaços para que tenham poder de fala. “Nossas práticas são vistas com desconfiança, quando, na verdade, são heranças vivas da cultura brasileira. O desinteresse dos jovens é consequência direta da falta de reconhecimento social”.
Na comunidade de Garuva (SC), o saber do cipó imbé é passado de geração em geração. Conhecida pela sua função desintoxicante e para o tratamento de inflamações e infecções, a planta, da família das trepadeiras, traz também beleza e ornamenta casas e estabelecimentos Brasil afora.
Caracterizado pela alta resistência e pela flexibilidade, moldado pelas mãos de artesãos habilidosos, o cipó se transforma em luminárias, vasos, cestos, molduras para espelhos e até chapéus. Para Margarida dos Santos, liderança da Comunidade da Mina Velha (SC), e Daniela Fernandes, cipozeira da região, “cada peça feita com cipó carrega histórias, respeito e técnica ancestral. A gente aprende a colher no tempo certo, sem matar a planta. Isso não está nos livros, está na vivência”.


Com paciência e destreza, os cipós – depois de extraídos – são descascados, limpos, raspados e cortados para depois serem “tecidos” nos mais diversos tipos de objetos. Para Maria Fernandes Hernaski, conhecida artesã da região, o desafio para a manutenção da atividade não está apenas no desmatamento ou na escassez de recursos – está também no tempo. “Esse trabalho exige tempo, paciência e um jeito de viver que acompanha o ritmo da natureza. Mas o mundo anda muito apressado, e nem sempre as novas gerações conseguem parar para aprender”.
Assim como as comunidades de benzedeiros e raizeiros, os cipozeiros enfrentam desafios que colocam em risco os seus modos de viver e fazer. O desinteresse dos mais jovens, a escassez de produtos e a desvalorização da atividade geram incertezas sobre o futuro. Vilma Fernandes, pesquisadora das mulheres cipozeiras, reforça: “Se perderem isso, não vão perder só um trabalho — vão perder um pedaço de quem são.”
A preservação do meio ambiente faz parte da identidade dos cipozeiros, sendo uma característica que os diferencia dos grupos que eles consideram como “cipozeiros da cidade”, que seriam as pessoas que sabem fazer artesanato de cipó, porém, sem um histórico de relação respeitosa com a natureza.
Tanto as cipozeiras e o cipozeiro quanto a pesquisadora destacam a urgência de políticas públicas com apoio econômico, valorização simbólica e reconhecimento cultural da arte tradicional do cipó imbé.
Nesse cenário, o cipozeiro Avelino Rodrigues, também de Garuva (SC), diz que o MPF é um aliado: “É importante que nos ajude a garantir nossos direitos, proteger nossas práticas e lutar contra qualquer tipo de discriminação.”
Para o procurador da República Sadi Flores Machado, que atua no Pará, o principal entrave ao acesso pleno desses povos aos seus direitos está na invisibilidade – tanto normativa quanto institucional. “Ainda há uma grande dificuldade de reconhecimento dos direitos dessas comunidades. Muitas vezes, seus modos de vida não são compatíveis com o que o Estado está preparado para reconhecer e proteger”, explica.
Segundo ele, essa invisibilidade também se reflete no Poder Judiciário, que frequentemente falha em considerar as especificidades desses grupos. “Existe resistência em reconhecer direitos diferenciados compatíveis com os modos próprios de fazer, de criar e de viver dessas comunidades tradicionais”.
Sadi ressalta que o MPF atua por meio de medidas extrajudiciais – como recomendações, reuniões públicas, audiências e requisições – e também judiciais, com ações civis públicas e intervenções em processos que envolvam essas comunidades.
“Um dos pontos mais importantes é a efetividade da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito à consulta prévia, livre e informada sempre que uma medida do Poder Público possa impactar seus interesses. Essa consulta deve ocorrer em linguagem apropriada, respeitando os modos de vida e a cultura dessas comunidades”, esclarece Sadi.
Como exemplo do trabalho do MPF na valorização das comunidades tradicionais, o procurador destaca uma ação civil pública movida em defesa dos cipozeiros da Associação do Rio Arapari, em Pacajá (PA), que haviam sido removidos de seus territórios. “Requisitamos uma perícia antropológica que corroborou a tradicionalidade do grupo. Embora a sentença de primeira instância tenha sido desfavorável, negando tutela diferenciada aos direitos territoriais em questão, o MPF recorreu e o caso aguarda julgamento no TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região)”.
Em diferentes cantos do país, vozes se unem em torno de um mesmo propósito: garantir que os modos de viver e fazer de benzedeiros, raizeiros e cipozeiros e das demais comunidades tradicionais sejam respeitados. A união busca preservar sua cultura, proteger a sabedoria transmitida entre gerações e manter viva a relação sagrada que esses povos cultivam com a natureza.
Porque cuidar dos saberes do cipó, da raiz e da reza é também cuidar da memória e da diversidade do Brasil.
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Fonte MPF