Comunidades Tradicionais
11 de Julho de 2025 às 16h5
Em sentença histórica, Justiça determina conclusão do processo de regularização do Quilombo Mesquita (GO)
Dezessete anos depois do início da demanda judicial, documento reafirma a identidade cultural do grupo e reconhece relatório de delimitação
Festividade no Quilombo Mesquita. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Uma sentença proferida em 8 de julho de 2025 pela Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Luziânia (GO) determinou a conclusão do processo de regularização fundiária da Comunidade Quilombola Mesquita, localizada no município de Cidade Ocidental (GO), a cerca de 50 km de Brasília. Fruto do intenso trabalho do Ministério Público Federal (MPF), a decisão foi tomada no âmbito de ação civil pública ajuizada em 2008, que apontava a omissão do Estado na titulação do território ocupado há pelo menos 270 anos pelo grupo tradicional.
A Justiça reconheceu a validade do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) elaborado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2011 e determinou que o órgão conclua o procedimento de titulação das terras em no máximo de 12 meses. Em caso de descumprimento, foi fixada multa diária de R$ 20 mil. A sentença também estabelece prazos intermediários: 30 dias para publicação da portaria de reconhecimento da área e cinco meses para análise de títulos e avaliações fundiárias.
“A sentença é um marco no processo de reconhecimento e efetivação dos direitos da comunidade quilombola Mesquita. O grupo vem sofrendo há anos por práticas negacionistas e omissões das instituições encarregadas de protegê-lo”, explica o procurador da República José Ricardo Teixeira Alves, atual responsável pela ação. “Essas condutas foram anunciadas e denunciadas por técnicos e peritos nos autos da ação civil pública, indicando um grave quadro de racismo estrutural provindo tanto de setores da esfera pública quanto da privada. É tempo agora de esperança e mudança real desse cenário”, avalia.
Histórico – Com quase 300 anos de história, o Quilombo de Mesquita se origina de uma doação de terras a três mulheres negras alforriadas. A comunidade se formou a partir daí, com tradições que incluem a produção de marmelo e doce marmelada. O grupo se manteve no local mesmo depois do fim do ciclo do ouro em Goiás e desempenhou papel importante na construção de Brasília, trabalhando em canteiros de obras e fornecendo alimentação para os trabalhadores. Atualmente, cerca de 700 famílias estão no lugar e vivem da agricultura familiar enquanto lutam para preservar as tradições e a herança ancestral do grupo.
A área, no entanto, é alvo de intensa especulação imobiliária e invasões, uma vez que está situada na rota de expansão urbana do entorno de Brasília. A disputa envolve atores de grande poder político e econômico, resultou em ameaças de morte a lideranças, além de ações judiciais que questionaram não apenas a demarcação do território, mas própria identidade quilombola da comunidade. Essa campanha de apagamento contou, inclusive, com a participação de autoridades e agentes públicos de Luziânia, apontando para o racismo estrutural e institucional contra o grupo.
O MPF acompanha o caso desde 1998, quando foi instaurado o procedimento administrativo que busca assegurar os direitos da comunidade e resultou na instauração da ACP. “Esse processo é um exemplo do que é a luta pelo território pelas comunidades tradicionais do Brasil”, explica Luis Guilherme de Assis, um dos peritos em antropologia do MPF que atuou no caso.
Os laudos periciais antropológicos e agronômicos produzidos pela equipe do MPF e pela Universidade Federal de Goiás atestam, de forma inequívoca, a singularidade cultural e ancestralidade do grupo, rebatendo os argumentos de que eles não seriam quilombolas. Com a decisão judicial, essa identidade não pode mais ser questionada.
Os documentos reunidos pela perícia traçam a origem da comunidade a partir dos troncos familiares Pereira Dutra, Teixeira Magalhães, Pereira Braga, Lisboa da Costa e Souza Silva, presentes na região desde o século XIX. Analisam marcos territoriais, mapeiam cemitérios familiares, detalham a ocupação e os usos da área, com destaque para a atuação da liderança de Aleixo Pereira Braga. Neto de uma das fundadoras da comunidade, ele foi responsável por organizar o grupo em torno da produção de marmelada nas primeiras décadas do século XX, numa tradição que se mantém até os dias de hoje.
Conflito estrutural – Além de reconhecer o relatório de delimitação da área e ordenar a regularização do território em favor da comunidade, a sentença reconheceu o caráter estrutural do conflito pelas terras, determinando o cumprimento da ordem judicial em duas etapas. A primeira, chamada fase de composição, busca soluções negociadas com terceiros ocupantes da área, com medidas como indenizações, realocações e compensações, além da delimitação de áreas essenciais à preservação do modo de vida do grupo, como cemitérios, locais de culto e mananciais de água.
Já a segunda fase, de cumprimento coercitivo, será aplicada caso não haja acordo entre as partes. Nessa etapa, está prevista a titulação das terras tradicionalmente ocupadas pela comunidade e a desapropriação das áreas ocupadas por terceiros, conforme prevê o Decreto nº 4.887/2003.
A sentença também determinou a suspensão das ações possessórias ou reivindicatórias envolvendo imóveis situados na área do RTID até o cumprimento das etapas estabelecidas. Como medida imediata, os atuais ocupantes do território devem adotar, no prazo de 60 dias, barreiras de contenção para impedir a propagação de defensivos agrícolas por ar e terra, sob pena de multa diária de R$ 10 mil.
O MPF atua na defesa dos quilombolas com base no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reconhece o direito à propriedade das terras tradicionalmente ocupadas por essas comunidades. A decisão, ao validar o RTID e estabelecer diretrizes para a titulação, representa um passo importante para o reconhecimento formal do Quilombo Mesquita e para a garantia da permanência da comunidade em seu território.
Íntegra da sentença
Inicial da ação civil pública proposta pelo MPF
Fonte MPF