Comunidades Tradicionais
26 de Junho de 2025 às 10h55
Povos da água: comunidades ribeirinhas, extrativistas costeiros e pescadores artesanais buscam proteção de seus territórios
Ligados aos saberes ancestrais, povos têm modos de vida ameaçados
Ilustrações: MPF / Fotos: Agência Brasil
Nas margens de rios, estuários e mares de todo o Brasil, milhares de famílias vivem em íntima relação com as águas. São os ribeirinhos, os extrativistas costeiros e os pescadores artesanais – comunidades tradicionais que há séculos preservam modos de vida baseados na sustentabilidade, no conhecimento ancestral e no respeito ao meio ambiente.
Essas comunidades, reconhecidas oficialmente como integrantes da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), têm seu território, sua identidade cultural e seus saberes em risco diante de pressões como a especulação imobiliária, a exploração predatória de recursos naturais e os efeitos das mudanças climáticas.
Na quinta reportagem da série do Ministério Público Federal (MPF) sobre a valorização dos povos e comunidades tradicionais brasileiros, o foco está nos povos da água.
Os pescadores artesanais estão presentes em todos os biomas brasileiros. Vivem do mar, dos rios, dos igarapés, dos lagos e das lagoas, praticando a pesca em pequena escala com respeito aos ciclos da natureza. Além da pesca, essas comunidades exercem atividades complementares como o extrativismo, a agricultura de subsistência e a criação de animais. Organizam sua rotina conforme as marés, as chuvas e as cheias dos rios, manejando recursos naturais de forma sustentável, em contraste com a pesca industrial.
Mesmo em harmonia com o ambiente no qual vivem e do qual dependem, o uso do território para a pesca não é uma garantia. O pescador Wellington Freire, da comunidade ribeirinha Barra do Mamanguape (PB), reforça que o maior desafio hoje é manter os territórios tradicionais ante a especulação e a omissão de órgãos gestores. “Precisamos de políticas públicas que valorizem nossos pequenos negócios de pesca e turismo comunitário”, defende.
A comunidade já está registrada no aplicativo Tô no Mapa. A ferramenta, integrada à Plataforma de Territórios Tradicionais, gerida pelo MPF, pelo Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e pela Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ), permite o cadastramento colaborativo dos territórios. O cadastro é um dos primeiros passos para que as comunidades sejam vistas pelo poder público e possam ter acesso ao Termo de Autorização de Uso Sustentável (Taus) – instrumento de regularização fundiária que pode ser utilizado pelas comunidades para garantir o direito ao território, proteger seus modos de vida e fortalecer a pesca artesanal.
Já os extrativistas costeiros e marinhos habitam áreas como as reservas extrativistas marinhas (resex marinhas). Nelas, realizam a coleta tradicional de mariscos, caranguejos e ostras, além de praticarem a pesca artesanal em “maretórios” — territórios que reúnem mar, rios, manguezais e outros ambientes de uso tradicional das comunidades pesqueiras.
Assim como os demais povos cujo modo de vida tem uma estreita ligação com o território no qual vivem, eles enfrentam muitas ameaças, como a pesca predatória, o turismo desregulado e os conflitos de gestão, entre outros.
Os povos conhecidos como ribeirinhos, por sua vez, se concentram principalmente na região amazônica, mas também estão presentes em outras regiões. Vivem nas margens de rios e igarapés, em casas de palafita, com economia baseada na pesca, na agricultura e no extrativismo. Os povos enfrentam problemas que afetam o planeta como um todo, mas eles são os primeiros a sentirem diretamente os impactos do desmatamento, da grilagem de terras, do garimpo e das mudanças climáticas.
Para esses grupos, a luta pelo território é muito mais que a demarcação de terras. O reconhecimento territorial de uma comunidade é o que permite aos seus integrantes o acesso à saúde, à educação, ao crédito e à assistência técnica.
O reconhecimento também passa por dar voz às comunidades para tratar de suas demandas. Integrante da coordenação do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) no Pará e liderança atuante há décadas no estado, Atanagildo Matos, conhecido como “Gatão”, defende que o termo “ribeirinho” não representa essas comunidades tradicionais. “Ribeirinho não identifica ninguém. Na beira do rio tem todo mundo. Morar na beira do rio não é um segmento social. Tem posto de gasolina, dono de armazém, inclusive os piratas moram na beira do rio, a grande maioria deles”, destaca a liderança, afirmando que o reconhecimento do grupo como extrativistas de territórios e maretórios é mais adequado.
Gatão também destaca que faltam reconhecimentos oficiais para que as comunidades exerçam plenamente seus direitos. O grupo tem o desafio de ser reconhecido no próximo levantamento rural do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como população que tem rendimento. “Se eu não apareço na soma do IBGE, eu não apareço na soma de construção de políticas públicas, porque eu não existo para o Estado. Somos um segmento social que tem renda e que tem uma função importantíssima, não só no sistema produtivo, mas também no sistema de conservação e manutenção dos recursos naturais, que são a floresta e as águas”, declarou.
Na Paraíba, o modo de vida das comunidades que convivem em harmonia com a natureza na beira dos rios se tornou um atrativo. Como uma alternativa sustentável e uma forma de trazer visibilidade à comunidade, o coletivo Garças do Sanhauá, em João Pessoa, desenvolve um projeto de turismo que guia visitantes pela comunidade do Porto do Capim, na capital paraibana. Uma das líderes do coletivo, Rayssa Holanda lembra que:
“Não somos só resistência, somos potência. Temos muito a ensinar sobre convivência com a natureza. Queremos ser ouvidos e respeitados. O preconceito ainda é muito grande” – Rayssa Holanda, ribeirinha
Além da questão territorial, as lideranças dos povos tradicionais apontam entre os principais desafios a dificuldade de acesso à saúde, à educação e à segurança alimentar; o baixo investimento em infraestrutura e desenvolvimento sustentável, assim como em políticas públicas específicas e voltadas à realidade local; e o combate ao preconceito e à invisibilidade social.
Maria Cristina Carrelli, liderança ribeirinha de Porto Velho (RO), relata: “Vivemos do que a floresta e o rio oferecem. Temos um modo de vida sustentável e transmitido de geração em geração. Mas o avanço do agronegócio e a ausência do Estado nos colocam em constante ameaça. Faltam saúde, educação, segurança e respeito.”
Nesse sentido, o MPF tem buscado não apenas proteger os direitos territoriais, mas também fomentar políticas públicas, promover audiências públicas e articular medidas preventivas para garantir a permanência digna dessas populações em seus territórios.
Um dos exemplos é o trabalho desenvolvido na Paraíba. No estado, o MPF tem atuado em diversas frentes, inclusive com recomendações para proteger comunidades diante de projetos urbanísticos ameaçadores. “Os territórios tradicionais são constantemente pressionados por empreendimentos de luxo. O litoral brasileiro está sendo loteado para poucos, enquanto os que sempre viveram da pesca são empurrados para a marginalidade”, alerta o procurador da República José Godoy.
Mais do que preservar uma cultura ou um modo de vida, a proteção aos povos da água representa o compromisso do Estado brasileiro com a diversidade cultural e com a sustentabilidade socioambiental. Em tempos de crise climática, são justamente essas comunidades que detêm o conhecimento tradicional necessário para um futuro mais equilibrado.
“A seca extrema do Rio Madeira, por exemplo, deixou centenas de famílias sem abastecimento e sem sustento. É urgente fortalecer políticas públicas para essas populações”, afirmou o procurador da República Gabriel de Amorim, que atua em Rondônia.
O uso consciente e sustentável dos recursos naturais é fundamental não apenas para a manutenção dos modos de vida dessas comunidades, mas também para garantir a conservação do planeta. “Nós usamos [a natureza], mas nós conservamos para usar, porque nós entendemos que ela é fundamental para garantir a subsistência da família, mas que garante também a sustentabilidade do planeta”.
Reconhecer e proteger os povos tradicionais não é apenas uma obrigação legal, mas uma escolha ética, política e civilizatória. A líder comunitária Rayssa Holanda reforça que “dar visibilidade às nossas lutas é um dever coletivo. Enquanto houver um ribeirinho lutando por seu território, haverá esperança de um Brasil mais justo e mais conectado com suas raízes”.
Confira a série de reportagens especiais sobre povos e comunidades tradicionais do Brasil
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Fonte MPF