Comunidades Tradicionais
27 de Fevereiro de 2025 às 17h55
Defensores do Cerrado: ação do MPF destaca comunidades tradicionais que contribuem para a proteção do bioma
Conheça mais sobre os apanhadores de flores sempre-vivas, os veredeiros e os morroquianos

Ilustração: Calendário MPF 2025
Guardiões da biodiversidade, os povos e comunidades tradicionais brasileiros possuem uma cultura rica e vasta que, há séculos, auxilia na construção da identidade nacional e na manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Inventores dos seus próprios modos de subsistência, realizam práticas sustentáveis de preservação dos diversos ecossistemas e garantem a perpetuação de conhecimentos fundamentais sobre todos os biomas brasileiros.
Considerando a relevância histórica, política e econômica desses grupos, o Ministério Público Federal (MPF) promove uma ação institucional em homenagem aos 28 povos e comunidades tradicionais reconhecidos formalmente pelo Estado brasileiro. Durante todo o ano, reportagens especiais buscarão dar visibilidade a essas populações, inspirando formas de vida mais sustentáveis.
Comunidades que vivem do extrativismo, da agricultura familiar e estão espalhadas pelo Cerrado brasileiro, os veredeiros, os apanhadores de flores sempre-vivas e os morroquianos terão suas histórias contadas nesse primeiro capítulo.
Nas regiões montanhosas da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, está concentrada a maior parte das espécies de flores chamadas “sempre-vivas”. Divididas em aproximadamente 90 espécies, essas plantas chamam a atenção por manterem a integridade e a beleza mesmo depois de colhidas e secas, por longos períodos. Para além do aspecto estético, as flores são fonte de sustento de dezenas de famílias do campo, como a de Maria de Fátima Alves, de 45 anos.
Apanhadora de flores sempre-vivas desde a infância, ela considera a atividade o principal fator para a sua relação com o trabalho coletivo, respeito ao território e cuidado com o meio ambiente. Foi com a renda da colheita das flores que Maria de Fátima custeou os estudos em Diamantina (MG) e se tornou mestre em Química Analítica. A colheita das flores, criação de gado e quintais produtivos foram “as principais atividades da vida” da mineira.
O saber acumulado sobre o cultivo e manejo das flores levou ao reconhecimento do sistema tradicional das apanhadoras de flores sempre-vivas como patrimônio agrícola mundial pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2020. Para Maria de Fátima, isso demonstra a importância do trabalho dos povos e comunidades tradicionais na preservação da biodiversidade e no uso sustentável dos recursos naturais. “Os apanhadores de flores sempre-vivas são os guardiões da biodiversidade e das águas. A produção dos quintais e roça de toco garante a segurança e soberania alimentar das famílias e do entorno. Uma produção sem veneno”, afirmou.
“Os apanhadores de flores sempre-vivas são os guardiões da biodiversidade e das águas. A produção dos quintais e roça de toco garante a segurança e soberania alimentar das famílias e do entorno. Uma produção sem veneno”.
Maria de Fátima Alves, apanhadora de flores sempre-vivas
Ativista pelos direitos dos povos tradicionais, Maria de Fátima é assessora na Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex) e entende como essencial a proteção do direito territorial para a manutenção das formas de vida dessas comunidades e, consequentemente, da biodiversidade. “Somos nós que cuidamos da serra, das plantas, das águas e dos animais. Este cuidar é próprio dos povos tradicionais, pois o que temos de mais sagrado é o território. O direito territorial é primordial para a conservação do meio ambiente. É preciso garantir o território e políticas públicas, geração de renda para a manutenção da vida”, afirmou.
Na região de Morraria, no município de Cáceres, Mato Grosso, vivem os morroquianos, comunidades tradicionais que baseiam sua subsistência na agricultura familiar de baixa dependência de insumos externos. A identidade desses agricultores está fortemente ligada às paisagens serranas e aos vales da região, onde praticam a troca e conservação de sementes crioulas (de variedades locais, que foram utilizadas e guardadas por agricultores por longos períodos de tempo), além da criação de animais e do desenvolvimento do artesanato e da indústria caseira.
O manejo da terra é feito de maneira ordenada, respeitando a vegetação do Cerrado e promovendo a sustentabilidade dos recursos naturais. Os morroquianos possuem um sistema coletivo de uso da terra, reforçando a identidade comunitária e a interdependência entre seus membros. Essa relação com o território garante a permanência de práticas ancestrais que contribuem para a manutenção da biodiversidade e da cultura local.
Habitando regiões entre os estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás, estão os veredeiros. Comunidades que vivem próximas aos cursos d’água e possuem uma relação profunda com o Cerrado, baseando seu modo de vida na agricultura, criação de animais soltos e extração de frutos nativos, como o buriti, além do uso de palhas e fibras para o artesanato e plantas medicinais.
A água é o grande tesouro guardado por eles, como explica Jaime Alves dos Santos, de 48 anos, veredeiro do norte de Minas Gerais. “O Cerrado é a nossa maior fonte de água, por isso chamamos ele de caixa d’água. Quando chove, bastante água fica armazenada nos lençóis freáticos, que depois vai escoando para dentro das veredas, formando as nascentes dos grandes córregos e abastecendo os grandes rios”, relatou.
“O Cerrado é a nossa maior fonte de água, por isso chamamos ele de caixa d’água. Quando chove, bastante água fica armazenada nos lençóis freáticos, que depois vai escoando para dentro das veredas, formando as nascentes dos grandes córregos e abastecendo os grandes rios”.
Jaime Alves dos Santos, veredeiro do norte de Minas Gerais
O conhecimento das veredas é transmitido de geração em geração, permitindo equilíbrio com o meio ambiente e garantindo a preservação do bioma. Veredeiros se conectam por laços de parentesco, manejo da terra e relações de reciprocidade. São comunidades especialistas no chamado “plantio de água”, uma forma de combinar diversas técnicas rurais para ampliar a qualidade e quantidade dos recursos hídricos, protegendo córregos e nascentes.
Liderança na Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais – composta por veredeiros, geraizeiros, indígenas, apanhadores de flores sempre-vivas, caatingueiros, quilombolas e vazanteiros –, Jaime dedica a vida à perpetuação dos saberes do campo e reforça a importância da garantia do direito à territorialidade dos povos e comunidades tradicionais para a preservação do meio ambiente.
“Somos povos diferentes, mas a demanda de um é a mesma do outro. Pode não ser igual, mas é muito parecida. É nesse sentido que se une a luta dos sete povos [que compõem a articulação], todos nós queremos nosso território para viver livre e a partir desse momento ser donos de si”, refletiu.
Reconhecendo a importância dessas populações, o MPF promove uma campanha de valorização dos povos e comunidades tradicionais do Brasil. A iniciativa busca ampliar o conhecimento da sociedade sobre esses grupos, seus direitos e os desafios enfrentados na luta pela manutenção de seus territórios e modos de vida. A ação destaca a pluralidade cultural e social dessas comunidades e reforça a necessidade de políticas públicas para garantir sua sobrevivência e o respeito às suas tradições.
Em 2023, o MPF buscou o reconhecimento das comunidades tradicionais afetadas pela criação do Parque Estadual da Serra do Cabral (MG), no município de Buenópolis, especialmente as que exercem atividade de apanhadoras de flores sempre-vivas. O pedido foi feito em recomendação encaminhada ao Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF/MG), à gerência do Parque Estadual e à Polícia Militar, a fim de garantir os direitos tradicionais da “panha de flores”.
Em entrevista ao Portal do MPF, o autor da recomendação, procurador da República Helder Magno, destaca o papel dos povos tradicionais na proteção do meio ambiente e reforça a necessidade de conhecer e ouvir essas populações para elaborar políticas públicas efetivas.
Qual o papel das comunidades tradicionais na preservação da biodiversidade e como os conhecimentos ancestrais contribuem para práticas sustentáveis no uso dos recursos naturais?
Penso que o modo de viver, fazer e criar das comunidades tradicionais, no mais das vezes, inclui práticas preservacionistas, seja por motivos ligados à religiosidade/espiritualidade, seja pelo senso comunitário, seja, ainda, pelo conhecimento da finitude, ou mesmo da escassez, dos recursos naturais.
Como as políticas públicas e o reconhecimento dos direitos territoriais podem fortalecer a participação dos povos tradicionais no desenvolvimento sustentável do país?
As políticas públicas precisam ser construídas com a escuta dos povos tradicionais. Devem respeitar o direito à consulta prévia. Um exemplo de política pública que tem falhado nisso foi e continua sendo a criação de unidades de conservação em sobreposição a territórios de comunidades tradicionais. No caso das flores sempre-vivas, as comunidades, pelo seu conhecimento tradicional, sabem da necessidade do uso do fogo, no tempo apropriado, para garantir a rebrota no ano seguinte. Fazem isso de forma controlada. O impedimento da colheita das sempre-vivas é outra forma de violação desse saber tradicional, que também facilita a ocorrência de incêndios naturais ou acidentais.
Quais são os principais desafios para garantir a proteção dessa pluralidade e assegurar que o direito à autodeterminação seja respeitado?
O maior desafio é aprender a respeitar a diversidade existente. É não tentar impor o modo de um povo indígena a um povo cigano, por exemplo. O reconhecimento da pluralidade é essencial. Outro desafio é abandonar a lógica colonial da tutela: não se pode achar que o procurador da República sabe qual a solução para essa ou aquela comunidade, ou que o que deu certo em uma vai ser aplicável a todas. É preciso disponibilidade para ouvir. E ouvir no tempo e modo de cada povo ou comunidade.
Fonte MPF