a jornada sustentável dos povos tradicionais dos babaçuais, da caatinga e da restinga — MPF-MG de 2º Grau

0
18

Comunidades Tradicionais

29 de Julho de 2025 às 13h30

Legado da terra: a jornada sustentável dos povos tradicionais dos babaçuais, da caatinga e da restinga

Quebradeiras de coco babaçu, catadoras de mangaba e caatingueiros preservam saberes ancestrais que garantem sua sobrevivência

Legado da terra: a jornada sustentável dos povos tradicionais dos babaçuais, da caatinga e da restinga

Arte: Comunicação/MPF

Por volta das 5h, quando o sol ainda não nasceu, diversas mulheres já estão de pé, carregando cestos, facas afiadas e a força de gerações que as antecederam. Elas fazem parte da comunidade quilombola Santana – localizada a 22km da sede do município de São Luís Gonzaga do Maranhão (MA) – e são as guardiãs do babaçu, palmeira sagrada que sustenta famílias, preserva ecossistemas e carrega séculos de história.

Integrante do Grupo de Mulheres de Santana, Bárbara dos Santos Ribeiro de Souza representa uma comunidade quilombola que enfrenta diversos desafios. Quebradeira de coco babaçu há 22 anos, ela segurou sua primeira machadinha aos sete anos, ao lado da mãe, Maria dos Santos Ribeiro. Hoje, aos 29 anos, mantém viva a identidade forjada por essa palmeira, chamada de Mãe Palmeira. Fonte de alimento, abrigo e espiritualidade, dela tudo se aproveita: as amêndoas viram óleo, azeite e sabão; as cascas são transformadas em carvão; e as folhas são utilizadas para artesanato e cobertura das casas.

“Do cheiro do babaçu até a entrega no ponto de venda, minha vida é feita dessa palmeira”, afirma Bárbara dos Santos Ribeiro de Souza.

O Grupo de Mulheres de Santana foi criado em 1986. A iniciativa surgiu com o apoio da Pastoral da Terra e de organizações como a Associação Comunitária de Educação em Saúde e Agricultura (Acesa), que sugeriram o aproveitamento das frutas locais como forma de geração de renda.

Atualmente, o grupo é formado por 13 mulheres, entre adultas, jovens e idosas, todas agricultoras e quebradeiras de coco. Com apoio da Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema), implantaram sistemas agroflorestais com frutas como abacaxi, jenipapo, cupuaçu, caju e manga. O grupo ainda construiu uma pequena agroindústria comunitária, onde produzem geleias, licores, compotas e azeites.


Economia solidária

O trabalho é coletivo: as mulheres planejam, dividem tarefas e organizam mutirões. O retorno financeiro tem melhorado nos últimos anos. Bárbara exemplifica que o valor do quilo da amêndoa aumentou de R$ 0,50 a R$ 0,90 para R$ 4. Parte da produção é vendida localmente e a outra parte é comercializada por meio de iniciativas como o Programa de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), que complementa o valor pago no mercado convencional. “A gente vive disso. Dá pra viver, mas queremos melhorar mais ainda. Queremos colocar rótulo, registrar. Entrar no mercado é difícil, mas estamos nos preparando”, afirma.

Outro obstáculo para a estabilidade financeira é a estiagem. De abril a agosto a produção de coco fica escassa e os benefícios sociais se tornam a principal fonte de renda da categoria. A luta é para conseguir um auxílio específico para esse período, como o dado aos pescadores na época do defeso – período do ano em que é proibido pescar.

Preservação ambiental


As quebradeiras são protagonistas na conservação das florestas de babaçu no Brasil. Suas práticas evitam o desmatamento em um espaço estimado em 27 milhões de hectares de florestas de babaçu. No entanto, o aumento da agroindústria, que substitui babaçuais por monoculturas, e o uso de agrotóxicos ameaçam as palmeiras e a biodiversidade local.

O procurador da República Felipe Ramon da Silva Fróes destaca que “são essas populações, já vulnerabilizadas em tantos sentidos, as mais afetadas pelos efeitos da mudança climática global, ainda que sejam elas as que menos contribuem para o aumento dessas alterações”.

No Maranhão, o MPF tem atuado em processos cíveis e criminais pela regularização fundiária, proteção de unidades de conservação, como as reservas extrativistas Ciriaco e Mata Grande, e pela responsabilização de práticas nocivas como a pulverização aérea de agrotóxicos. Também acompanha o cumprimento do direito de consulta prévia, livre e informada dos povos tradicionais que vivem nessas áreas.

Lei do babaçu livre

Lei do babaçu livre

O Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) foi criado em 1990 por mulheres do Pará, Maranhão, Tocantins e Piauí com o objetivo de defender a autonomia, o direito ao território e a preservação dos babaçuais.

Uma de suas maiores conquistas do movimento é a Lei do Babaçu Livre, em vigor em 18 municípios, que proíbe a derrubada das palmeiras, o uso de agrotóxicos, as queimadas e o corte predatório, além de garantir às comunidades o livre acesso aos babaçuais.

Foto com uma centena de babaçus empilhados sobre chão batido

 

Catadoras de mangaba: a tradição familiar que atravessa gerações

Do Amapá a São Paulo, estendendo-se pelo Brasil adentro até o Cerrado, destaca-se na paisagem uma fruta redonda, amarela e brilhante, rajada de vermelho e rosa: a mangaba. Com ela, são produzidos licor, geleia, pães e bolos consumidos no país inteiro.

aa

Em Aracaju, capital de Sergipe, entre os meses de dezembro e abril, no auge da estação quente do Nordeste, o dia das irmãs Aliana e Maria Eliene começa sempre na Reserva Extrativista (Resex) Missionário Uilson de Sá. A única reserva extrativista em área urbana do Brasil está localizada no bairro Santa Maria, com uma área de 14 hectares de mata nativa preservada. É lá que as irmãs repetem uma rotina que atravessa gerações de sua família: catar mangaba. As famílias da Associação Padre Luiz Lemper utilizam a área para extrativismo desde os anos 1960. O grupo de 50 famílias cuida dos terrenos e do manejo das mangabeiras nativas.

Aliana conta que, na área que se estendia sem cercas, o trabalho de catação manual da fruta era, para as crianças, uma mistura de aprendizado e brincadeira. Hoje, além de catar mangaba, é uma das responsáveis pelo beneficiamento da fruta. O extrativismo liderado por mulheres de comunidades tradicionais é uma característica do manejo da mangaba no Brasil, especialmente no Nordeste.

A safra da mangaba vai de dezembro a junho e, nesse período, pode corresponder a 70% da renda das famílias que trabalham na catação do fruto, segundo dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Em Sergipe, cerca de 2,5 mil famílias trabalham no extrativismo da mangaba. No Brasil, esse número chega a 15 mil, concentradas no litoral do Nordeste (do Rio Grande do Norte à Bahia), e também presentes no Norte, Centro-Oeste e Sudeste, especialmente no norte de Minas Gerais. Em termos de produção, a Paraíba lidera com 955 toneladas, em 2023, seguida pelo Rio Grande do Norte (637 t), Minas Gerais (357 t) e Sergipe (350 t).

Desafios

Apesar da expressiva produção de mangaba no Brasil, a atividade das comunidades catadoras está sob ameaça em diversas regiões. Na prática tradicional da cata, são percorridas longas distâncias a pé em busca das árvores nativas. Como não são proprietários de terras, catadoras e catadores enfrentam crescente dificuldade de acesso às áreas onde o fruto brota — seja pelo avanço do desmatamento, seja pelo cercamento de terras privadas, cada vez mais valorizadas, especialmente no litoral do nordestino.

Na capital sergipana, a pressão do setor imobiliário alcançou a última área significativa de preservação de mangabeiras. Tantas são as árvores naquela região que o território entre os bairros Santa Maria e 17 de Março passou a ser conhecido como Mangabeiras. Segundo estimativas dos órgãos ambientais, havia ali cerca de cinco mil árvores nativas, além de nascentes e lagoas.

Mas a ameaça não veio apenas do mercado. Ganhou contornos sociais a partir de um problema crônico no Brasil: o déficit habitacional. Famílias sem teto passaram a ocupar as margens da reserva, e os conflitos com a comunidade extrativista se intensificaram. A área, com mais de 230 mil metros quadrados e pertencente à União, havia sido requerida pela Associação de Catadores e Catadoras de Mangaba (ACCM) para fins extrativistas. No entanto, foi doada à prefeitura de Aracaju, que destinou parte do terreno à construção de moradias populares. As ocupações trouxeram impactos diretos para a comunidade: árvores foram derrubadas, conflitos se tornaram frequentes, e lideranças passaram a sofrer ameaças.aa

Mais recentemente, por meio de um processo de diálogo conduzido pelo MPF e pela associação, foi firmado um acordo para a elaboração de um novo documento de regulação da reserva, desta vez com escuta ativa da comunidade. A procuradora da República Gisele Bleggi explicou que o novo decreto deve reconhecer formalmente os catadores e as catadoras de mangaba do bairro Santa Maria como uma comunidade tradicional. “Os pleitos da comunidade são justos, e o MPF acompanha de perto essas demandas há mais de dez anos, para garantir os direitos que a lei assegura a esses povos tradicionais”, afirmou.

A luta e a importância do trabalho da ACCM Padre Luiz Lemper para a proteção do meio ambiente e dos conhecimentos tradicionais foram reconhecidas nacionalmente. A associação conquistou o primeiro lugar na categoria “Povos e Comunidades Tradicionais” do 1º Prêmio Guardiãs da Sociobiodiversidade, entregue pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

“Sempre dizia que era uma guardiã porque nasci aqui no meio das mangabeiras e estava sempre as protegendo. É um reconhecimento muito importante para nossa comunidade”, enfatiza Maria Eliene.

Apesar de tantos obstáculos, a luta das catadoras de mangaba permanece firme — uma resistência silenciosa que persiste entre as árvores nativas, os muros de concreto e o desejo de manter viva uma tradição enraizada no tempo e no território. 

"Caatingueiro nato!": a luta e os saberes dos moradores da Caatinga mineira

Assim como as quebradeiras de babaçu e as catadoras de mangaba, os caatingueiros também desempenham papel fundamental na preservação dos ecossistemas e na manutenção de saberes ancestrais. Habitantes do semiárido nordestino, desenvolveram modos de vida adaptados às condições únicas da Caatinga, um bioma exclusivamente brasileiro. Entre mandacarus e umbuzeiros, as famílias mantêm viva uma relação profunda com o território, mesmo diante de ameaças históricas e atuais.

“Caatingueiro nato!”. Foi assim que Oscarino Aguiar Cordeiro se apresentou. Associado-fundador do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM), liderança comunitária e agricultor familiar, ele resume em uma frase o sentimento de pertencimento de quem vive, planta e resiste no sertão mineiro. O dia começa cedo para os caatingueiros, que entre xiquexiques, angicos e mandacarus, cultivam feijão, milho, sorgo, algodão e hortaliças em pequenas glebas. Eles também criam animais e coletam frutos e plantas medicinais que brotam da vegetação nativa. Tudo é pensado para resistir às estiagens: as escolhas seguem o ritmo das chuvas e das sementes guardadas.

Uma aliada nesse caminho é a agroecologia. Consórcios de plantas adaptadas, manejo de água com cisternas e barragens pequenas, preservação de sementes locais e o uso de plantas nativas são práticas fundamentais para garantir segurança alimentar e equilíbrio ecológico. Entidades como o CAA/NM têm papel central nesse processo, apoiando as comunidades com formação técnica, jurídica e política, desde 1985.

Água, terra e luta

Apesar de não querer outra vida, Oscarino assume que a vida na Caatinga não é fácil. “Vivemos com a escassez de água para plantação e para o nosso uso”, resume.

Além das dificuldades naturais, há também disputas por terra. Projetos de grande porte, como os de mineração, monoculturas e a transposição de rios, alteram profundamente o modo de vida tradicional, principalmente nas margens do Rio São Francisco. A essas pressões somam-se os conflitos fundiários e a degradação ambiental, resultantes dos desmatamentos e do uso intensivo de agrotóxicos, como ocorreu nas décadas de 1970 e 1980 com a monocultura do algodão.

“A monocultura do algodão, incentivada nos anos 70 e 80, envenenou nossas terras e águas. Intoxicou trabalhadores, causou abortos em mulheres e destruiu nossa subsistência”, recorda Oscarino Aguiar Cordeiro. 

No entanto, segundo ele, com o apoio das pastorais sociais e da Comissão Pastoral da Terra, conseguiram formar associações, fortalecer sindicatos e criar o CAA, que capacita até hoje não só os caatingueiros, mas também indígenas, geraizeiros e vazanteiros

Além disso, promovem oficinas, mapeiam territórios de uso tradicional, realizam eventos culturais e pressionam governos por políticas públicas adequadas, especialmente no que se refere ao acesso à água, ao crédito rural e ao apoio técnico.

O caatingueiro também destaca a importância da atuação do Ministério Público Federal. “Eu não conhecia a importância do MPF até participar da Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais”. Para ele, é essencial que todo o Ministério Público conheça a realidade dos caatingueiros para que possam auxiliá-los na defesa dos direitos da comunidade.

Território ameaçado

A criação do Parque Estadual Serra Nova/Talhado, que abrange quatro municípios do norte de Minas Gerais, gerou tensão para as comunidades locais. Apesar de sua importância ambiental, Oscarino afirma que as comunidades não foram ouvidas nem respeitadas no processo, já que também dependem dos recursos naturais da região. “Não temos nascentes em nossas propriedades, mas precisamos delas para plantar. O parque deve ocupar terras da União, e não das famílias que vivem da agricultura de subsistência”, alerta.

A luta também é pelo reconhecimento identitário. “Muitos de nós não enxergamos nossa identidade caatingueira”, diz Oscarino. Para ele, é essencial fortalecer a organização comunitária e ampliar a participação em conselhos municipais, estaduais e federais, pois ainda há resistência em reconhecer os povos e comunidades tradicionais da Caatinga.

Poesia da terra

A resistência dos caatingueiros não floresce apenas no cultivo, mas também na arte. Damião Cordeiro, filho de Oscarino, também é agricultor. Inspirado pelo pai e pelos encantos do sertão, encontrou na palavra uma forma de expressar seu amor e sua luta pela Caatinga. Apesar de se considerar tímido, publicou dois livros de poesia — “Carne de Dois pelos e Lábios de porco” — nos quais a paisagem, o cotidiano e a ancestralidade ganham forma literária.

O poema “Transfiguração”, do livro “Lábios de porco”, homenageia o pai e transforma a memória em poesia

Ilustração com dois homens montados em cavalos, com vestimentas típicas, de chapéu e jaqueta de couro marrom, em cenário da caatinga com igreja ao fundo

Poema de Damião Cordeiro

Poema Transfiguração

No agora, entre nuvens plúmbeas, pássaros pretos, laranjeiras e sabiás sem certidões de idade, chove. Um São Pedro troveja. A nossa irmãzinha mais menor ainda confunde barulho de santidade com piados de bichos de asas, mas já divulga pepita de amor em cascalho bruto.

Dos olhos boquiabertos de nossa casa, sabiamente, o nosso pai cantarola assobios de bendita musicalidade e penteia com o macio de seus olhos o cortinado do líquido noiva e faz aliança e confessa: “Êta vida mais extraordinária, meu Deus!”.

Desistir não é uma opção

Seja na Caatinga, no babaçual ou em uma reserva extrativista cravada no coração de uma capital, é no saber ancestral, nas mãos ágeis e no cuidado com a terra que os sustenta que as comunidades tradicionais encontram seu propósito.

A lida diária se entrelaça com as intempéries da especulação, do descaso e da invisibilidade. Falta apoio, falta reconhecimento, mas não falta determinação para superar os desafios diários. Como para a maioria dos brasileiros, desistir não é uma opção. Mas, no caso das comunidades tradicionais, a luta é por algo que transcende: lutam pelos que vieram antes e pelos que ainda virão. Não sabem, nem querem viver de outro jeito. São raiz, são memória, são conhecimento, são tradição, são a diversidade que fazem a riqueza do Brasil.

Confira aqui a série de reportagens especiais sobre povos e comunidades tradicionais do Brasil.

Conheça o projeto territórios vivos

 

Fonte MPF