Comunidades Tradicionais
27 de Maio de 2025 às 13h45
Caminhos da tradição: a jornada dos povos ciganos e pomeranos no Brasil
Campanha do MPF sobre povos e comunidades tradicionais destaca a importância desses grupos para a diversidade cultural do país
Arte: Comunicação/MPF
Há séculos o Brasil é terra de chegadas, algumas celebradas e outras silenciadas. Entre tantos que aqui aportaram, dois povos que caminharam longas distâncias até encontrar solo onde plantar memórias: os ciganos, viajantes ancestrais das estradas do mundo, e os pomeranos, trabalhadores do frio báltico que trouxeram no peito a força de uma língua esquecida por quase todos — menos por eles.
Vindos de outros continentes, em tempos diferentes, mas ambos em busca de um lugar onde ser o que são não fosse motivo de perseguição. Nesta quarta reportagem especial em homenagem aos povos e comunidades tradicionais do Brasil, o Ministério Público Federal (MPF) celebra a memória e a resistência de populações que escolheram o Brasil como lugar para fincar raízes e lutam pelo reconhecimento de seus direitos e respeito à sua cultura milenar.
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Estima-se que a chegada dos ciganos ao Brasil aconteceu por volta do século XVI, fugindo da marginalização que os assolava na Europa. Vindos, ao que tudo indica, da Índia ou do Egito, espalharam-se por todo o território brasileiro, mantendo suas tradições vivas apesar das adversidades. Dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimam que há, pelo menos, 600 mil ciganos no país.
Entre deslocamentos, esses povos construíram vínculos com o território brasileiro à sua maneira: em rodas de conversa, nas feiras, nos casamentos coloridos, no cultivo do parentesco e na espiritualidade. Três grupos com suas próprias peculiaridades – rom, calon e sinti -, vivendo em diferentes configurações, seja no nomadismo, semi-nomadismo ou com residência fixa, mas com o objetivo comum de manter a identidade de seus ancestrais e resistir, principalmente, ao preconceito.
“Eu gostaria que nos olhassem com respeito, de igual para igual. Queremos ter direitos iguais. Tirar os ciganos do analfabetismo, estudar e educar os nossos filhos”, afirma a cigana calon Valdinalva Barbosa Caldas. Vivendo em Ibirité (MG), Nalva, como é conhecida, destaca a importância de garantir às novas gerações de ciganos o que os mais velhos não tiveram em termos de direitos básicos, como a educação. Para ela, a valorização da cultura cigana e a garantia de direitos são essenciais para a subsistência cigana.


Presentes principalmente no Nordeste, Sudeste e Sul, a maioria dos ciganos vive do comércio de produtos, leituras de mãos, tarô, entre outras atividades autônomas e informais. Reconhecer e fazer entender o lugar do cigano em suas diferentes configurações é um dos objetivos de vida de ativistas, como a cigana Maura Ney Piemonte, de Poços de Caldas (MG). Aos 68 anos, ela anda os quatro cantos do país em busca de fazer ecoar a voz do povo calon.
“Meu povo não tem direito a dizer ‘eu existo’, não temos direito a nada porque sequer nos permitem. Dizem que somos nômades, mas o nomadismo nos é imposto por sociedades e governos que não nos aceitam”, lamenta. Piemonte afirma que sonha em ver reconhecida a cultura cigana, a partir de suas diferentes características e peculiaridades. Atualmente, busca meios de capacitar mulheres ciganas para o trabalho formal, de modo que elas possam prover para seus filhos e se tornarem independentes.


Os pomeranos chegaram ao Brasil em meados do século XIX, vindos da antiga Pomerânia — região banhada pelo Mar Báltico, que desapareceu dos mapas após guerras e redefinições geopolíticas. Estabeleceram-se principalmente nos estados do Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Lavraram a terra, criaram animais, ensinaram aos filhos a língua dos avós. Sua identidade está marcada também pelas melodias e danças tradicionais, nos sabores da cozinha típica, na agricultura familiar. Ainda assim, enfrentam os ventos do presente: pressões econômicas, mudanças sociais, invisibilidade.
“Na juventude, respeitamos a tradição e os rituais ao mesmo tempo em que somos inseridos em outras culturas. A realidade é que só temos acesso a educação superior e emprego fora do território”, afirma Gabrielle Ücker Thum, jovem engenheira civil e ativista climática, nascida no território pomerano da Serra dos Tapes (RS). “Falar na língua pomerana, valorizar a nossa identidade em espaços externos e participar das festas típicas tem sido uma estratégia comum de resistência ao silenciamento do povo pomerano”, reflete.


Reforçar a memória das raízes que os moldaram é uma premissa que o pomerano não abre mão, principalmente por meio da preservação do idioma tradicional. A língua pomerana possui características próprias, como a escrita, fala, pronúncia e estrutura das palavras, que a distinguem do português e do alemão padrão. Apesar de não ser reconhecida como patrimônio cultural pela Unesco, tem sido objeto de iniciativas de preservação e reconhecimento, incluindo o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, que a reconhece como uma referência cultural brasileira.
Segundo o pomerano de Pancas (ES), Helmar Spamer, a defesa da língua é extremamente importante para a preservação cultural do povo pomerano. Na avaliação dele, a língua é o maior patrimônio pomerano existente. “A partir de 2005, conseguimos fazer um movimento de reconhecimento da língua pomerana no Espírito Santo e ela foi co-oficializada em alguns municípios”, afirma. A mobilização da comunidade garantiu que a língua fosse inserida no componente curricular de algumas escolas do estado, processo que exigiu “muita luta” e reivindicações.


“A gente sabe que para chegar a alguma política pública é a partir das reivindicações e depois de muito processo de luta para que isso aconteça. E o que queremos é preservar aquilo que mantemos na essência, o vínculo com a terra, o orgulho dos traços culturais, do espírito comunitário”, reflete o professor de História.
A atuação do MPF tem ganhado relevância na defesa dos direitos dos povos ciganos, especialmente ao incentivar a criação de políticas públicas que respeitem seus modos de vida tradicionais. Para o subprocurador-geral da República Luciano Mariz Maia, um dos avanços mais significativos foi a aprovação, pelo Senado, do Projeto de Lei 1.387/2022, que institui o Estatuto dos Povos Ciganos — atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados. Segundo ele, trata-se de “um marco legal que reconhece formalmente a diversidade e garante direitos historicamente negados”. Maia também ressalta o crescimento da participação de ciganos em conselhos e espaços de decisão pública como sinal de fortalecimento da representatividade dessas comunidades.
Ainda assim, os desafios permanecem. O subprocurador-geral aponta entraves estruturais, como a exclusão dos ciganos das políticas municipais e estaduais, a ausência de dados específicos e a persistência de estigmas que comprometem o acesso a serviços básicos, como saúde, educação e moradia. “É preciso valorizar as práticas laborais tradicionais dos ciganos, adaptar os programas sociais à sua mobilidade e fomentar espaços de cultura e economia solidária”, defende.
Para ele, alguns eixos de atuação são prioritários, como o mapeamento das atividades econômicas tradicionais, como o artesanato, o comércio ambulante e a música, além da criação de feiras itinerantes e espaços culturais. Ele também propõe a inclusão dessas práticas em políticas de economia solidária, com acesso a microcrédito e canais de comercialização. A oferta de educação e capacitação profissional adaptadas à realidade cigana, respeitando seu deslocamento territorial também é essencial.
“É fundamental garantir infraestrutura básica nos locais de parada, além de facilitar a emissão de documentos para o exercício das atividades econômicas, respeitando a mobilidade do grupo”, afirma. Para Mariz Maia, o reconhecimento institucional da cultura cigana deve caminhar lado a lado com ações concretas, capazes de integrar essas comunidades ao desenvolvimento sem abrir mão de sua identidade.
O trabalho do MPF junto aos povos tradicionais evidencia o compromisso da instituição com a promoção da justiça social e a valorização da diversidade étnico-cultural brasileira. Por meio de atuações diretas, recomendações, audiências públicas, fiscalizações e articulações com outras entidades, o órgão contribui para garantir que esses povos tenham seus direitos respeitados, suas vozes ouvidas e suas culturas preservadas para as futuras gerações.
Essa atuação se mostra concreta em casos como o dos ciganos de Itumbiara, no interior de Goiás. O trabalho articulado entre MPF e a Defensoria Pública do Estado de Goiás resultou em importantes avanços na garantia de direitos das comunidades ciganas da etnia calon que vivem no município. Com mais de 50 anos de presença na cidade, essas famílias enfrentavam graves violações de direitos, como falta de moradia digna, saneamento e acesso a políticas públicas.
Em 2022, o MPF promoveu uma audiência pública para ouvir as lideranças locais e, logo após, realizou uma oficina do Projeto Territórios Vivos, que orientou a comunidade sobre como registrar seus territórios na Plataforma de Territórios Tradicionais. A partir dessas ações, uma recomendação foi emitida cobrando providências do município, resultando na assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em 2023.
O acordo garantiu a destinação de áreas públicas para moradia das famílias ciganas, com previsão de infraestrutura básica e acesso a serviços essenciais. Em maio do mesmo ano, foi sancionada a Lei Municipal nº 5.280/2023, conhecida como “Lei dos Povos Ciganos”, que reconhece formalmente os direitos territoriais e culturais das comunidades calon da cidade.
O caso de Itumbiara tornou-se um exemplo de como o reconhecimento institucional e o protagonismo das comunidades podem promover transformações concretas. “O MPF é nosso protetor e defesa, nunca nos abandonou e nos apoiou em situações muito tristes das nossas comunidades. Sou extremamente grata por isso”, finalizou a cigana Maura Piemonte.
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Fonte MPF