2/12/2025 – A criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943 fez mais do que regulamentar as relações de trabalho no Brasil: seus efeitos extrapolaram fábricas e escritórios e chegaram aos versos dos sambas que embalavam o país. Um estudo desenvolvido na Universidade de São Paulo (USP) revela como a formalização dos direitos trabalhistas influenciou a cultura popular e transformou a maneira como o trabalho era retratado na música brasileira.
Do malandro ao operário
O período anterior à CLT era marcado por um samba que exaltava a figura do “malandro”, personagem que evitava o trabalho formal e vivia da boemia e da improvisação. De acordo com a pesquisa “O samba pelo viés da ordem do trabalho – Inflexões: 1930-43”, o malandro não era um personagem tão comum no samba dos anos 20: ele surgiu por volta de 1930. “Ele é um personagem glorificado, construído esteticamente pelo samba”, observa Martin Nery, autor do trabalho. “E, embora tenha uma base social, ele também tem uma construção estética.”
A canção Lenço no Pescoço, de Wilson Batista, é uma demonstração disso. Ela diz:
‘Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio”.
Em outras, de Noel Rosa, as letras valorizam o malandro e a malandragem, inclusive como meio de vida, como em Capricho de Rapaz Solteiro, de 1933:
“Nunca mais esta mulher
Me vê trabalhando!
Quem vive sambando
Leva a vida para o lado que quer
De fome não se morre”
E em Escola de Malandro, de Noel e Ismael Silva, também de 1933:
“Oi, enquanto existir o samba
Não quero mais trabalhar
A comida vem do céu
Jesus Cristo manda dar”
Mas o fortalecimento da legislação trabalhista e a valorização do emprego formal fez essa narrativa começar a mudar. Somou-se a isso a influência ideológica do Estado Novo e a censura do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
O estudo mostra que, ao longo da década de 1940, o malandro foi deixado de lado, e o operário urbano passou a ganhar espaço na música popular. Um dos exemplos mais marcantes desse período é Bonde São Januário, de Roberto Martins e Wilson Batista, que destaca o valor de um emprego estável:
“Quem trabalha é quem tem razão
Eu digo e não tenho medo de errar
(…)
O bonde de São Januário
Leva mais um operário
Sou eu que vou trabalhar
Antigamente eu não tinha juízo
Mas resolvi garantir meu futuro
Vejam vocês
Sou feliz e vivo muito bem
A boemia não dá camisa a ninguém, é
Vivo bem”
Com a regulamentação do trabalho, a ideia de ascensão social através do emprego começou a se refletir no samba. O trabalhador passou a ser um personagem admirado, e a música popular começou a retratar essa nova realidade. Os sambas estado-novistas reforçaram, além disso, a mensagem do valor do trabalho.
É o caso de Trabalha, de Pedro Camargo, Roberto Roberti e Príncipe Pretinho, lançado em 1943:
“Trabalha
E será independente
Trabalham
E serás igual a gente
Trabalha,
E verás que a vida é boa”
Em outro samba também intitulado Trabalha, de 1946, A.F. Marques e Antenor Borges cantam:
“Trabalha, trabalha, trabalha
Este conselho estou dando de coração
Trabalha, trabalha, trabalha
O trabalho engrandece a nação”
A profissionalização da música
Além de mudar a forma como o trabalho era cantado, a CLT trouxe impactos diretos para os próprios músicos. A formalização de contratos, a criação de direitos previdenciários e a regulamentação da atividade artística contribuíram para a profissionalização da classe musical. “Mais do que um tema nas canções, os sambistas foram se profissionalizando nas gravadoras, nas rádios, e eles mesmos foram adotando uma jornada regular de trabalho. O samba não apenas refletia as transformações sociais, mas também dialogava com elas, num movimento de influência recíproca entre cultura e legislação”, explica Martin.
A CLT não apenas estruturou as relações de trabalho no Brasil, mas também influenciou profundamente a cultura nacional. “O samba, como expressão autêntica do povo brasileiro, refletiu essa transformação, incorporando em suas letras a valorização do trabalho e dos direitos conquistados”.
A influência da CLT na música brasileira mostra como as leis trabalhistas não apenas estruturam a economia, mas também moldam a identidade cultural do país. O samba, um espelho da sociedade, acompanhou essa transformação, retratando a ascensão do trabalhador e a valorização dos direitos conquistados. Mais do que um gênero musical, o samba conta a história do Brasil – e essa história também passa pelo mundo do trabalho.
(Nathalia Valente/CF. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Fonte TST

